segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

TV, juventude e relacionamentos interraciais

Venho percebendo uma nova estratégia da dramaturgia racista da TV brasileira: a representação de relacionamentos interraciais entre jovens.

Além do que já falamos sempre, como por exemplo a ausência de famílias negras nas novelas, como se negrxs se inserissem sempre individualmente nos grupos sociais ou não constituíssem núcleos familiares convencionais, percebo um crescimento de casais jovens interraciais.
Óbvio que estamos vendo um pseudo-estímulo da auto-estima da juventude negra, através da moda e da música principalmente, que são instrumentos de fácil apropriação pelo mercado, servem para construção de consenso e consequentemente auxiliam na manutenção da ordem social e do falso mito de democracia racial. Mas é preciso construir estratégias que garantam sua "neutralidade" já que esses elementos em sua essência natural têm um caráter de fortalecimento social e arrisco até a dizer revolucionário.

A juventude, de acordo com a construção social predominante que temos, representa o questionamento humano no auge de sua potência o que é um risco a qualquer tipo de dominação. Essa fase da vida contém o período de formação de caráter, absorção de informação, criação de julgamentos, amadurecimento e escolha de ponto de vistas. Isso não significa que após esse período o pensamento esteja engessado e muito menos que antes dele não haja a formação do indivíduo. A questão é que durante a juventude, de acordo com os padrões sociais vigentes, estamos no ápice do nosso processo de formação e por isso recebemos o maior número de informações e temos acesso a mais oportunidades de experiências. Ou seja, ter a juventude como público vai além de buscar um mercado consumidor: é atuar diretamente na construção do imaginário social do presente e do futuro, um investimento a curto e longo prazo. Quando se vende a jovens a idéia de que não precisam sair de suas comunidades, por exemplo, implicitamente se garante que permaneçam nesses lugares e que perpetuem a existência de uma camada da sociedade excluída e explorada nesses locais. A questão é que nesse caso a suposta valorização da auto-estima não tem como objetivo emancipar esses jovens ou contribuir para que superem as desigualdades pelas quais passam valorizando suas origens e sim fazer com que se conformem com essas desigualdades em um processo de glamurização da pobreza e da opressão.

Nesse contexto em que temos a juventude como símbolo do desenvolvimento das potencialidades humanas e do direcionamento das mesmas, podemos pensar em como os relacionamentos interraciais jovens na dramaturgia podem servir para perpetuação do racismo através de uma perspectiva de embranquecimento. Em geral esses relacionamentos quando são apresentados com o suposto objetivo de problematizar o racismo, colocam as dificuldades nos relacionamentos entre jovens brancxs e negrxs como um obstáculo a ser superado pelos negrxs através da demonstração de seu valor e merecimento. Perco a conta de quantos rapazes negros se apaixonaram por jovens brancas e tiveram que durante as tramas provar sua honestidade e ascender economicamente para poder "calar a boca" dos pais das jovens donzelas. Esse tipo de relação reforça a idéia da ascensão social dos jovens negros através do relacionamento com jovens brancas e desses relacionamentos como símbolo de valor e merecimento. No caso das jovens negras a ascensão econômica não é a principal proposta pois nesse caso além do racismo, atua o machismo que também não permite que jovens negros e jovens negras assumam o mesmo valor social. As jovens negras são então representadas como objetos de paixões incontroláveis, de beleza irrestível, numa perspectiva de encantamento, de feitiço que envolve o jovem branco e o faz assumir a dianteira na "luta" contra o preconceito. Ou seja, a jovem negra é apresentada como algo ao qual se deveria, mas não é possível resistir, um tipo de relação quase irracional, que é resultado da sexualização da mulher negra e travestido na ideia de "sorte" em conquistar um homem branco, além da meritocracia justificada nos padrões de beleza dominantes. Além dos relacionamentos interraciais reforçarem o ideal de ascensão social, há também o processo de desconstrução sócio-cultural dos jovens negrxs através da idéia de inserção destes como seres isoladxs na sociedade, que não se reconhecem e não se identificam com outrxs jovens negrxs e portanto que não se relacionam entre si. Junto a esses elementos podemos observar também a presença da instituição dos padrões de beleza, que definem claramente as características físicas dxs jovens que farão parte desses relacionamentos: quem corresponde ao padrão aceitável (com traços físicos embranquecidos) obtém relacionamentos e quem não corresponde permanece ao longo das tramas sem envolvimentos amorosos ou com tentativas amorosas cômicas e frustradas.

O intuito de observar esses elementos não é julgar a legitimidade dos sentimentos nos relacionamentos interraciais jovens e sim pensar nos processos que constroem as preferências sociais envolvidas nesses relacionamentos. Se a TV é uma das mais poderosas ferramentas na construção do imaginário social nenhum dos símbolos e representações contidos nelas são fruto do acaso ou da liberdade de mentes critivas e sensíveis. Todas as relações trazem uma simbologia que produz e reproduz os valores sociais aos quais somos submetidos. Não poderemos deixar de falar sobre os relacionamentos interraciais enquanto o racismo e o machismo continuarem sendo injetados em doses cavalares nas veias da sociedade através de todos os seus símbolos.

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