domingo, 23 de agosto de 2015

O reinado dentro de todos nós


Quadra da Império Serrano. Disputa de sambas. Semi-final.
Mesmo com um dia especial de eventos, a essência se mantém e certos hábitos se repetem. Um dos mais característicos e marcantes é a vivência dos reinados individuais. Talvez, vistas a olho nu sejam apenas cenas particulares, momentos de pessoas sozinhas. Mas passando levemente um filtro preto no olhar, percebemos que todos têm algo em comum.

Sempre vejo pessoas sambando sozinhas no meio da quadra, no meio de todos. Podem até estar acompanhadas, mas sambam sozinhas.Uma espécie de êxtase que envolve os corpos e liberta mentes por alguns instantes. A maioria de nós, pode inicialmente julgar certa falta de técnica aqui, certo excesso de requebrado ali, uma interpretação da música muito emocionada acolá. Na verdade, em geral rimos. Achamos engraçado aqueles e aquelas que se apresentam sem serem convidados, que fecham os olhos e sentem a música e que simplesmente evoluem com a certeza de que estão fazendo seu melhor e portanto sem se preocupar em fazer isso.

A verdade é que nós, meras e meros mortais, presos à convenções e necessidades de fazer bonito, muito nos incomodamos com toda essa liberdade e desprezo pelo julgamento alheio. Num arroubo de honestidade algumas vezes intercalamos ente deboches e recalques certas exclamações de admiração e respeito pelo menos pela coragem alheia. Já é um grande passo. Mas ainda é muito pouco.
O samba enquanto dança preta – única e exclusivamente preta – tem um certo dom de libertar o reinado que existe dentro de todos nós. Extravasamos, relaxamos, nos divertimos. Mas acima de tudo, exercemos nossas realezas particulares.

Quando vejo uma senhora com seus sessenta e poucos anos na frente da roda de samba, vejo nela uma rainha. Ela não se preocupa neste momento com a conta da luz ou com a dor nas costas. Por um segundo a dor do filho preso ou o medo do neto morto se aquieta em respeito a alegria. Por alguns instantes ela pensa que o remédio para a pressão, que não tem dinheiro para comprar, não lhe fará falta. Olho para ela e a vejo simplesmente sambando, forte, altiva, determinada em ser. Ela não tem medo dos olhares de repreensão, muito menos das opiniões sobre seu corpo. Se o ritmo de seus passos não é o mais apropriado tecnicamente, é o melhor pro compasso de seu peito. Ela está totalmente livre naqueles instantes e isso, para mim, é reinar.

Quando olho um homem que tem sua roupa especial de todo sábado, que dança sozinho e dança e dança e sorri, vejo nele um rei. Ele não tem espaço para se preocupar ou para ouvir qualquer outro. É nítido que o samba além de ondas sonoras pelo ar, corre nas suas veias e liberta uma alma que nunca ficará presa novamente. Ele dança, ele sorri e eu tenho a nítida impressão de que talvez ele simplesmente se apagará quando deixar a quadra e só voltará a existir no próximo samba. E como eu invejaria alguém tem o dom de só existir quando quer e onde quer. E se ele pode definir quando existe, o que lhe importa e quem chega até ele, para mim, ele também sabe reinar.
Admiro a competência desses e de muitos outro personagens que pegam nas mãos sua essência e jogam pro alto deixando ela cair em suas cabeças e se espalhar no tempo.

Espero que algum dia, resgatemos nos nossos olhares a simplicidade das danças de batuque, que mesmo com passos marcados, com ritmos definidos, dão liberdades aos nossos corpos e nos permitem cultuá-los com alegria. Que possamos passar o filtro preto na lente de nossos olhares e esquecer os julgamentos, deixar de lado as técnicas e avaliações, os moralismos e concorrências e que possamos olhar os nossos e vê-los lindos como são. Espero que peguemos de volta nosso samba, nosso orgulho de nós mesmos e nosso carinho por todos nós. Que larguemos de lado esses julgamentos que não são nossos e simplesmente voltemos a apreciar a alegria e o espírito do outro, no seu jeito, na sua unicidade, na sua realeza intrínseca. Que nós comportemos mais como reis e rainhas, que sejamos livres de verdade e que apreciemos com reverência e alegria a liberdade dos nossos.