segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Não existe solidão da mulher negra.

Não existe solidão da mulher negra. (tá virando um mantra)
O que existe é um povo alienado de seus valores e cultura, que foi sequestrado pra uma sociedade doentia que pra começar nem sabe se relacionar afetivamente, provavelmente por que se desenvolveu em regiões de clima e natureza mais "hostis".
O que existe são mulheres e homens pretas/os que não se enxergam como seres maravilhosos, ricos e iluminados que são por essência e carregam um sentimento de culpa e uma necessidade de "melhorar" sempre, impostos ao longo de séculos nas nossas consciências por assassinos e estupradores racistas e dominadores.
O que existe são pretas e pretos que foram socialmente adestrados para ver no outro alguém indigno de respeito e confiança. E isso é mútuo e no mesmo pé de igualdade, só se desenvolve de formas diferentes pelas diferenças que essa cultura eurocêntrica impõe a mulheres e homens.
Como qualquer mulher nessa sociedade, que tem o machismo como uma de suas bases, eu já fui muito assediada. Por homens brancos e pretos, sim. Mas homens pretos nunca me chamaram pra fazer programa enquanto eu lanchava depois do trabalho, ou enquanto estava parada com uma amiga na pedra do sal. Homens pretos nunca colocaram uma nota de 50 reais na minha mesa e se acharam no direito de passar a mão em mim. Homens pretos nunca tentaram me abordar enquanto eu estava andando na rua com minha cahorrinha e tinha uns 9, 10 anos, sei lá. Homens pretos nunca se aproveitaram do fato de eu cochilar num onibus de viagem pra se masturbar do meu lado. Homens pretos nunca me sarraram no ônibus. Homens pretos nunca fingiram incentivar um trabalho artístico pra depois cobrar "consideração". Homens pretos nunca tentaram me forçar a transar sem camisinha ao ponto de eu ter que agredí-lo e ir embora. Todas essas situações e algumas outras, que eu ainda prefiro não falar, aconteceram com homens brancos, no exercício de seu poder de homem branco sobre uma mulher preta.
Homens pretos foram os maiores parceiros que eu encontrei ao longo da minha vida. Os caras mais batalhadores, mais amorosos, mais fraternais. Foram os caras que me apoiaram, que me deram colo, que me ouviram. Foram os homens que mesmo sem nada dessas firulas de militância da boca pra fora me trataram como rainha. Foram os homens pretos que me ajudaram quando passei mal na rua. Foram os homens pretos que interromperam o trabalho no ônibus e me deixaram na porta de casa quando eu fui dopada com boa cinderela na balada. Foram os homens pretos que me perguntaram o que tinha contecido pra eu levantar assustada do onibus de viagem e falaram "senta aqui do lado menina, tá tudo bem?". Foram os homens pretos que me ensinaram o que é amor e que a gente pode sim confiar num parceiro, mesmo que não dure pra sempre. Foram os homens pretos que me mostraram que você pode ficar longe da sua filha durante anos e que a sociedade vai fazer de tudo pra te mostrar como um safado mal caráter, mas que quando vocês tocarem um samba juntos uma magia vai acontecer e tudo, tudo mesmo vai ser explicado e vocês serão suas maiores paixões por toda a eternidade, por todas as eras. Foram os homens pretos que me ensinaram que professores pretos, por mais conservadores que sejam, sempre vão te cobrar mais quando você for preta, porque no fundo ele quer que com você seja diferente. Foram homens pretos que me disseram que candomblé é candomblé e que semana santa é outra coisa, portanto os biricuticos não tem nada a ver com isso. Foram os homens pretos que me acalmaram de madrugada quando eu estava em crise de ansiedade. Foram homens pretos que carregaram o caixão do meu pai e cantaram e rezaram e me ensinaram o que é respeito e amizade sincera. Foram homens pretos que me contaram histórias de amor e que me mostraram olhando nos meus olhos que eles também são humilhados, desrespeitados, subestimados e usados. Foram homens pretos que me falaram de ser pai, de ter suas casinhas e de que mesmo com um sacríficio, tem que levar as crianças num parque de vez enquando.
Ao longo do caminho esses homens pretos encontraram mulheres pretas e muitos continuaram com elas. Em outros casos eles procuravam sim mulheres brancas, por que queriam se sentir importantes e dignos. Muitas vezes uma mulher branca ao tratar seu homem como preto, como ela sempre sabe que ele é, faz com que ele se sinta especial. "Meu preto é ótimo, é trabalhador, é bom de cama, é um excelente pai.." Não num sentido de valorizar sua raça, mas sim porque é preciso sempre relembrar as qualidades de um homem preto, pra justificar o fato de estar com ele, pode até ser "inconsciente", mas é obrigatoriamente verdade que essa necessidade existe.
Esses foram exemplinhos simples e básicos de como essa história de mulher preta culpabilizar homem preto e se colocar como um pontinho isolado de opressão não tem o menor fundamento e nem embasamento empírico (na prática/realidade não se sustenta). Homens pretos não são opressores em potencial, não tem privilégio nenhum nessa sociedade e muito menos são insensíveis à vida e luta das mulheres pretas.
O fato é que nós, pretas e pretos, fomos/somos agredidas/os e inferiorizadas/os ao longo da história. Colocadas/os umas contra os outros e vice-versa. E isso é justamente para destruir nossa afetivade e uma de nossas armas mais fortes de resitência, a união. NÓS nos agredimos. NÓS nos abandonamos. NÓS nos viramos as costas. De várias formas diferentes..
Mas NÓS somos sim uma responsabilidade nossa se realmente quisermos lutar pela nossa liberdade.
"Enquanto acreditarmos que o fato de ser um tijolo já significa ser a base nunca construiremos nada."