quarta-feira, 29 de junho de 2016

A velha e a passista

Em um tempo não muito simples de se medir se encontraram na estrada da vida uma velha e uma passista.

A primeira, carregando as marcas de todas as décadas já vividas e a segunda carregando todos as ansiedades sobre as décadas que estavam por vir.
Uma nunca havia realmente visto a outra. Olharam-se, estranharam-se, reconheceram-se totalmente como diferentes. Tanto que chegavam a ser familiares. E as estradas que eram distantes se encontraram. E começou assim uma nova história.
A jovem passista aprendia àquela época tudo que era de novo sobre seu próprio espírito. A velha perdia aos poucos tudo que a mente havia registrado ao longo da vida. Inventava. Inventavam. Uma por não saber, outra por não lembrar.
A velha que já não tinha então em quem confiar, amedrontada por seus próprios fantasmas, viu na passista uma alma nova, desconhecida, e do topo de todos os seus anos pensou “por que não arriscar?”. Afinal, se não fosse aquela jovem com quem contar diante de tantos inimigos que flutuavam em suas próprias memórias embaralhadas?
A passista que ainda não tinha nada de certo para o futuro, amedrontada por todas as suas dúvidas, viu na velha uma certeza de resistência, de existência, e mesmo com toda sua agilidade pensou “por que ir tão depressa e deixá-la pra trás?”. Afinal, se pudesse ser como aquela velha gostaria que alguém estivesse com ela, pelo menos às vezes.
A velha contava a passista suas histórias que nunca viveu, fruto de suas memórias substitutas. Permitia-lhe acesso a seus lugares, confiava seus bens de valor sentimental. Sabia que se não fosse com ela, não poderia ter tranqüilidade da presença de mais ninguém.
A passista ouvia as mentiras sinceras, compenetrada em tentar traduzir para verdade símbolos ou significados. Deixava suas urgências. Sabia que se não fosse com a velha, não poderia dedicar aquele sentimento tão desinteressado a mais ninguém.
Não necessariamente se entendiam, ou sabiam do que a outra falava. Se comunicavam. Trocavam sorrisos e olhares. E o simples fato de existir uma outra mulher presente, vivente e sensível já lhes trazia a companhia melhor do mundo.
Dançavam as duas. Cada uma em seu ritmo, cada uma em seu tempo. Mas sem dúvida era um gosto em comum. Gosto que não precisaram dizer uma a outra. Era algo bem maior do que elas para precisar ser apresentado. Talvez uma dançasse para extravasar e canalizar sua energia abundante de juventude. E talvez a outra dançasse para tentar conservar as poucas energias que ainda tinha nos músculos do corpo. Mas independente do porquê, dançavam. E quando viam-se dançando se encantavam. Se admiravam e dançavam uma para a outra, uma com a outra, sem muitas vezes nem mesmo se olharem.
Celebravam a pequena doçura de ter a paz de presenciar outra existência feminina.
Celebravam-se assim ancestrais: uma na presença da mais antiga, da que viria a ser um dia e a outra na presença da mais nova, do que já havia sido.
Ancestrais de si mesmas, futuro de si mesmas. Cominhos e recomeços de si mesmas.
Celebravam-se independentes de seus passados ou de seus futuros.
Contavam com elas para vibrar pela eternidade.