terça-feira, 26 de dezembro de 2017

(In)dependência

Ato de pender de um lado ao outro buscando aceitação.
Negação dos próprios anseios e intuições a fim de garantir a coerência com as expectativas alheias.
Não se ser.
Mudar-se.
Abafar interiormente seus ímpetos em prol do bom julgamento alheio.
Mentir.
Mentir-se.
Despir-se de si.
Vestir-se de outra.
Tomar para si remédios a base de outrém.
Expelir fragmentos de essência paulatinamente.
Decompor-se em variadas espécies independentes entre si.
Desconectar-se visando a compreensão.
Desoriginalizar-se.
Dissolver as ligações das cadeias de sentidos.
Infectar-se do externo.
Nutrir pavor pela existência própria.
Usar sistemas de medidas de terceiros.
Esvair-se.
Perder-se.
Enxergar-se na projeção.
Desconcretizar o que existe.
Negar.
Negar.
Negar.
Buscar insistentemente.
Permanecer cega diante do exposto.
Fratura exposta da alma.
Negar.
Buscar.
Pender.

Semente


Dez horas da noite sonho
Te imagino em meu corpo, fantasio teu jeito, crio teu cheiro
Três horas da manhã pesadelo
Pressinto tua falta, temo tua ausência, adianto tua perda
Não sinto

Me apego à esperanças que não tenho
E planto dentro de mim um ponto de ti, que já partiu
Fertilizo meu peito
Oxigeno meu sangue
Mas não floresces

Espero angustiada o desfecho do pesadelo
Podando qualquer sonho que me impeça de enxergar o fim
Mesmo fértil me torno terra que não gera
Aguardando semente que já não existe em mim.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

O último livro

Aos 22 anos finalmente escolhi um presente para dar para ele no dia dos pais.
Não que eu nunca tenha dado um presente, mas só quando era criança e aí não tinha dinheiro nem iniciativa para sair do comum: meia, cueca, camisa. Depois que fui crescendo não passamos dias dos pais próximos. No máximo uma ligação, uma felicitação meio sem graça, de praxe. Algo mais para dizer que eu ainda lembrava dele. Mas nada que chegasse ao ponto de dizer o quanto no fundo do meu coração gostaria que ele estivesse por perto.

Sempre gostei de ler e como não conhecia tão bem os gostos do meu pai resolvi surpreender. Na verdade eu acredito que livros sejam um presente maravilhoso, pelo menos pra mim. E dar algo que eu gostasse muito talvez tenha sido um jeito, na minha falta de jeito, de dar algo especial.
Não sabia qual escolher. Não fazia a menor ideia se ele também gostava de antropologia ou essas coisas de política como eu. Sobre Candomblé ele daria aula, não achei que nada pudesse chegar ao ponto de lhe parecer interessante. Gostaria ele dos meus assuntos de preto? Romance tenho certeza que não. Confesso que eu não entendia bem o que era romance e suas possibilidades incríveis até pouco tempo, quando li Um Defeito de Cor, e naquela época eu ligava romance a coisas chatas, que eu não gostava e ele certamente também não. Mas acima de assuntos interessantes, queria algo que ele lesse e lembrasse de mim de alguma forma. Algo que falasse da relação que quase não tínhamos vivido de pai e filha.

Comprei um livro que falava de paternidade através de diversas crônicas. Eu sempre adorei crônicas. Talvez os livros de literatura trabalhados na escola particular onde fui bolsista no primário tenham tido uma influência definitiva na minha vida. Ainda me lembro do livro de Fernando Sabino, que algumas mães acharam inapropriados, a maioria de meus colegas achou chato ou não entendeu e eu simplesmente adorei. Esse não era de crônicas, "Um corpo de Mulher". Denso, intenso, melancólico, fascinante. Lembro vagamente a história, mas lembro de todas essas conclusões que tirei por volta dos 10 ou 12 anos de idade. Bem, comprei um livro de crônicas.

Na loja pedi um papel de presente e a moça colocou um daqueles envelopes prateados com um laço. Colocou também uma etiqueta da livraria com "de" e "para". Não me lembro porque fui com pressa. Talvez porque eu tenha uma certa dificuldade com horários, talvez porque a rotina daquele mês de visitas aos finais de semana já estivesse me deixado confortável para não me programar tão bem. Cheguei no hospital no horário de visitas e tive que dividir o tempo com outros familiares. Eu sempre preferia ficar por último e acho que ele também. Com toda modéstia, a melhor parte vem sempre no final.

Entreguei o presente e quando ele abriu tive uma surpresa. Os olhos surpresos e a voz agradecida, tão sem jeito quanto a que eu herdei, me disseram que esse era um ótimo presente. Me confessou logo em seguida que não aguentava mais ganhar bonés. Eu entendo a questão dos bonés: depois de uma época meu pai sempre se manteve careca, uma careca brilhante, bem preta, perfeita. Andava muito de boné, mas não significa que precisasse ganhar sempre. Enfim, o presente foi um sucesso e eu percebi que não importava o título, mas sim que para ele livros também eram presentes maravilhosos.

Muita coisa eu refleti sobre o racismo e homens pretos através da figura do meu pai: ausente na maior parte da minha vida, mas presente de uma forma tão intensa e verdadeira durante um pequeno intervalo de tempo. Lembrei esse episódio do livro hoje, na mesma semana que perguntei pra um aluno da escola onde trabalho se ele já tinha lido Machado de Assis e ele disse que não sabia nem o que era isso. Não que eu seja das mais tradicionais e muito menos que eu tenha muita atração pelos clássicos. Mas me incomoda como nossos meninos não lêem e como não se apossam desse poder, como não se dão o direito de ocupar essa condição de leitor. Disse para uns outros alunos também como mensagem antes da formatura que lessem, mesmo que não gostassem, porque somente a leitura nos torna independentes na construção do nosso conhecimento, mesmo quando tentarem mentir para nós e nos dizer o que é certo. Espero que realmente tenham acreditado em mim.

Talvez o que tentassem fazer com meu pai muitas vezes fosse mantê-lo no estereótipo do homem negro, malandro, mulherengo e dos "desenrolos". Mas puxando na memória os breves contatos que tivemos na minha infância comecei a descobrir alguém obstinado, inteligente, ambicioso. A primeira pessoa que me apresentou um computador - e uso a senha que ele me confiou até hoje para a maioria das minhas coisas -, desenhar no Paint, que mundo incrível! Quem me ensinou a dar comida de colher para uma cabra e me disse que não podia ter medo dela. Embora hoje eu saiba que não faz o menor sentido dar comida para uma cabra de colher, trato muito bem todos os animais, os que tenho e os que convivo - E adoro os cabritos. Quem teve o orgulho de me dizer que cursou períodos de Direito e que iria terminar, assim que desse. Quem no meu primeiro dia de visitas no hospital eu encontrei com apostilas, estudando para um concurso público.

Aquele tempo no hospital me fez conhecer o homem que tinha me colocado no mundo. Meus outros 50%. Que na verdade eu preciso admitir que é muito mais do que isso. Se minha mãe formou meu caráter e me deu as condições de me desenvolver e me tornar a mulher que eu sou, meu pai, com todo o mistério da ancestralidade plantou em mim sua personalidade, sua essência. Talvez por isso a grande paixão que eu sempre tenha tido por ele, mesmo quando eu não queria ou quando eu fingia não ter.

O tempo seguinte passou muito rápido, pouco mais de um mês. Tivemos pouco encontros depois e ele me disse que estava lendo o livro e que tinha gostado. Fiquei me sentindo tão certeira quando Michael Jordan.

Coisas ruins aconteceram, pessoas ruins interferiram e eu não pude me despedir do meu pai.
Não o vi na sua última semana de vida e não sabia da sua piora. O dia que resolvi forçar uma visita e encarar a pessoa horrível que nos afastou já era tarde demais. Encontrei meu pai numa sala gelada, dentro de um saco preto, dentro de uma gaveta. Os piores 30 segundos da minha vida.

Cuidei de tudo agradecendo aos orixás por ter um emprego que me desse um seguro pra essas coisas, porque eu não teria a menor ideia do que fazer. Não me lembro bem como o livro parou nas minhas mãos. Gostaria também de não lembrar daquele saco preto, mas não consigo ter essa sorte.
Foi a única coisa dele que eu peguei e apenas guardei o livro na minha estante e durante mais de um ano não tive coragem de mexer nele.
Quando tive coragem de mexer no livro percebi que meu pai tinha tirado a etiqueta do embrulho e colado na contracapa. Ele mesmo escreveu meu nome na parte do "de" e o nome dele na parte do "para". Ainda não consigo me lembrar porque estava com tanta pressa no dia da compra a ponto de eu mesma não ter feito isso. Dentro do livro havia também uma página inicial para dedicatória com o título " Pai, por que você é importante para mim:", onde ele mesmo escreveu "Esta obra pertence a Francinei dos Santos Eleotério - 12/08/2012. P/ Monique Britto Eleotério".

Duas vezes ele escreveu que eu tinha lhe dado o livro. E ele realmente estava lendo, pois tinham panfletos dentro, página marcada.
Eu sabia que tinha acertado, mas não tinha ideia do quanto ele realmente tinha gostado daquilo. Fico imaginando se foi porque ele sabia que era a primeira vez que eu comprava algo pra ele e que por isso demonstrava me importar. Ou se era porque eu, ao contrário de muitas pessoas, o tinha enxergado como alguém que lesse, reconhecendo sua inteligência e seu gosto pelo conhecimento.
Fico pensando no quanto ele pode ter se orgulhado de ter ganho um livro da filha ao ponto de querer registrar isso, duas vezes.

Quando me senti preparada comecei a ler o livro e sinceramente não gostei. Achei chato. E acho que provavelmente ele também tenha achado. Mas talvez, da mesma forma que eu hoje, ele tenha insistido em ler porque era uma coisa entre nós.

Consegui me perdoar por não ter conseguido me despedir a tempo. Mas ainda não me perdoo por não ter escrito a dedicatória do livro. Eu provavelmente não saberia o que escrever na época, mas podia ter colocado um trecho daquela música do Exaltassamba que aprendemos juntos quando eu era criança.

Nunca deixem de escrever uma dedicatória.