segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

"Você me dá medo...."

Toda vez que algum homem me diz "você me dá medo" (o que tem acontecido com frequência) eu fico pensando no porquê.

Primeiro ainda sou tentada a cair na armadilha do "eu sou maluca". Não que eu seja a pessoa mais comum do universo, mas digo "maluca" como o adjetivo predileto que os homens usam para tirar qualquer razão que a gente tenha sobre alguma coisa que os desagrada. Nos relacionamentos em geral o "você é maluca" é a mesma coisa do "porque sim".

Segundo, depois de muita força de vontade (e ajuda de terapia) para driblar esse pensamento começo a refletir o que pode causar esse medo.
Analiso primeiro as alegações: imprevisibilidade, agressividade, inconstância.
E aí a justificativa delas: "Não sei como você vai reagir", "não sei o que você vai fazer", "você é muito direta", "você fala tudo na cara", "você faz muitas coisas", "você tem uma rotina corrida", "você muda de idéia muito fácil".
Sinceramente o boi-da-cara-preta ia matar vocês de susto por sms. Porque o que causa esse "medo" é nada mais nada menos do que a idéia de uma liberdade muito básica de existir.
Nós mulheres, em geral aceitamos o comportamento imprevisível dos homens, que vai desde um "balão" na sexta-feira até um pedido de casamento surpresa. Nós somos adestradas desde sempre com desenhos e contos de fada que mostram a dúvida do "será que ele me ama" como algo natural e essencial para a construção dos relacionamentos. Nós mulheres somos educadas para sermos intensas nos relacionamentos, mas de uma forma direcionada: sofrimento intenso, insegurança intensa, dedicação intensa.
Da mesma forma, vocês rapazes são educados a esperar de nós disponibilidade, certezas, estabilidade nos posicionamentos, dedicação.
E o primeiro passo pra gente romper com isso tem que ser parar com essa idéia de medo. Se alguma coisa me dá medo eu vou procurar entender o porquê (a não ser que isso represente riscos à minha vida, óbvio). Não acho normal desistir de algo que nos é atraente por medo. Não fazemos isso com outras coisas da vida: sexo, cachoeira, pimenta, álcool, filme de terror, montanha russa, avião.. óbvio que depois de pensar sobre ou experimentar certas coisas percebemos que elas não nos convém, mas imagina se a gente não fizesse nem conhecesse nada disso sem nem questionar?
E aí venho com essa linha de raciocínio humildemente tentar contribuir para o primeiro passo que um boy de boa vontade pode dar para superação do seu machismo: superar o medo das mulheres empoderadas e das que estão se empoderando. Empoderamento, pra resumir tem a ver com tomar para si o poder sobre seus posicionamentos, direitos, escolhas, ter consciência do seu papel na sociedade e lutar para construir o papel que deseja para si nessa sociedade. Tem a ver com liberdade e auto-estima. Não é nada pessoal com vocês rapazes, é sobre nós mesmas. E aí vem a continuidade do exercício: sair do centro do mundo. Uma mulher empoderada, ou que está nesse processo não quer te machucar: ela tem muitas coisas para fazer.
Então, entendam que esse suposto "medo" na verdade representa o despreparo de vocês para lidar com situações que fogem da "regra". E não há problema nisso. Como me disse minha amiga Bárbara: Respira, inspira e não pira!
Estamos todos aí pra aprender, superar padrões, nos livrar de amarras. Se tiverem boa vontade será um prazer contar com o apoio de vocês.
Aliás, da minha parte será um grande PRAZER. ;)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

A Maldição da Mulata

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A poesia apresentada é meramente fictícia e resultado das impressões e sentimentos da autora.
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A Maldição da Mulata




Carregarás contigo para sempre a dúvida
Levarás desde pequena o peso de ser e não ser contra tua vontade
Tentarás sempre, sem êxito, ser uma ou outra e chorarás com o fracasso
Sentirás que todos são os teus, mas não pertencerás nunca de verdade a canto algum.

Te enxergarás um pouco no bem, um pouco no mal
E não poderás se levantar totalmente contra ou a favor de nenhum dos dois
Não poderás ferir o outro, sem ferir a ti mesma
Não poderás ter o inimigo fora de ti, tu não poderás o ver sem ver-te.


Sentirás a todo tempo que trai
Nunca poderás ter um único caminho
Nunca saberás o que é ser reta
Te verás um pouco de caça, um pouco de caçadora
Te verás um pouco heroína, um pouco vilã
Juntarás em ti o bem e o mal e os mostrará sempre, lado a lado, com igual peso.


Receberás os piores olhares: os de dúvida, os de certeza, os de desejo
Serás renegada, negada, calada e não poderás mesmo te defenderes diante disso
Tua única defesa será não te defender, assumir o peso que carregas e usá-lo de escudo pros teus semelhantes, que serão todos
E quanto mais o fizeres, menos saberás do que é, menos certezas terás, mais medo, mais culpa.


Carregarás contigo o peso eterno de ser meio tudo e meio nada
Serás vista, justificada, explicada, enaltecida, destruída
Sentirás dores dúbias, ódios que não poderão se concretizar, amores que não deveriam se realizar
Darás a tua vida sem saber se ao aliado ou ao inimigo
Foste roubada do teu direito de ser
Não mais poderás sofrer totalmente, viver totalmente, lutar totalmente, morrer totalmente
Serás duas. Serás metade. Serás mulata.



segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Alergia

Às vezes me agarro nas bobeiras, porque a vida mostra muitas coisas que não gostaríamos de ver.
Eu não gostaria de ter visto uma mãe com os olhos cheios d'água dizendo que perdeu um "neném no meio da rua" por falta de atendimento médico. E que o "neném de outra foi embora pelas pernas no meio da praça.." pelo mesmo motivo.
Eu não gostaria de ter visto olhares ameaçadores dos homens que todo dia infernizam minhas caminhadas nas ruas.
Eu não gostaria de ter visto aquele garoto fedendo catando comida no lixo.
Eu também não gostaria de ter visto o soldado armado em cima da caminhonete do bope na linha vermelha apontando a arma pra cabeça da vendedora de água e intimidando os meninos que vendiam refrigerante num calor de escaldar. Eu não gostaria de ter visto uma arma daquele tamanho e o descontrole daquele soldado hoje.
Eu não gostaria ter visto o menino preto que sentou do meu lado no onibus com medo de eu ficar com medo dele, colocando a bolsa no chao e discretamente pegando a carteirinha da escola, "olhando" e guardando,
Eu não gostaria de não ter conseguido falar tudo que eu sei de uma vez só pra quem precisa saber disso muito mais que eu. Eu não gostaria de ter visto que muitas vezes isso não vai resolver as coisas.
Porque os nenéns não voltam, a arma tá lá e os meninos continuam com medo de que a gente tenha medo deles.
Eu não gostaria de ter visto tudo isso em uma segunda-feira. Mas gostaria muito menos de não ter percebido que tudo isso acontece o tempo todo em todo lugar. Não gostaria de ser cega. Não gostaria de não chegar em casa e chorar. Não gostaria de outra vida que fosse seca, fria e confortável. Não gostaria de uma realidade de ar condicionado. Tenho alergia, no corpo e na alma a essas coisas artificiais.