domingo, 31 de maio de 2015

Não quero

Não quero.
Não por hoje e talvez por amanhã também.
Contento-me com o não querer pacífico, tranquilo.
Detenho-me nessa ausência de vontade, nessa falta de anseio.

Estou bem assim.
Por mais que me questionem, me respondi a tempos.
Tenho guardadas as respostas que ainda não li.
Mas que já passam a agunia das perguntas que não são minhas.

Faço o nada.
Satisfaço-me no inexistente presente em mim.
Vejo melhor pela transparência do vazio que me ocupa.
Contemplo a mim e ao meu nada.

Não quero.
Agradeço, mas deixe-me na quietude do meu não.
Na amplitude de minha restrição
No sagrado templo da minha descrença.

E assim, quem sabe um dia, de tanta calmaria mar se revolte
De tanto sol o tempo de feche
De tanto ar a respiração falte

Quem sabe um dia
Mas hoje não quero.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Homens negros e o mito do privilégio na segregação do povo negro

Depois de algum tempo sem escrever resolvi falar sobre algo que para mim é muito importante e urgente. Entendo que uma parte das mulheres negras que me lêem vão querer parar depois da próxima frase, mas convido-as a fazer um esforço para vencer os gatilhos de aversão e desprezo e irem até o final. Hoje eu preciso falar sobre os homens negros.


Minha trajetória de militância é extremamente recente, cerca de dois anos, mas a primeira e mais marcante questão foi: “por que preciso escolher entre ser mulher e ser negra?”. E pensei nela com as palvaras nessa ordem, provavelmente porque na vida primeiro eu soube que era mulher e muito, mas muito depois eu soube que era negra. Mas a solução apareceu de uma forma prática e muito clara no feminismo negro, que me disse que sou uma mulher negra, ainda nessa ordem, mas adicionando palavras como especificidade, particularidade e interseccionalidade. Eu fazia então parte de um “grupo social” que é único, separado e por isso não teria possibilidade de dialogar com outros, pois todos seriam naturalmente seus opressores. Supostamente.
Mas eu falei que iria falar sobre homens negros. Tempos atrás eu percebi que tinha medo de homens negros, medo que não acontecia de uma forma ampla e explícita, por eu já ser supostamente um pouco “liberta” do senso comum. Percebi esse medo numa situação simples: eu me sentia confiante e disposta para o debate com mulheres brancas, com homens brancos e com mulheres negras, mas não com homens negros. Eu, que sempre participei de ferrenhas discussões pela internet sem me preocupar com segurança, evitava debater com homens negros pois lembrava que poderia ser perigoso. Eu ouvia dos homens negros as mesmas palavras que ouvia dos homens brancos, mas via nos homens negros um tom absurdamente violento. Eu enxergava os homens negros “naturalmente” como mais perigosos e agressivos e no meu caso, esse foi o ponto de partida para começar a pensar politicamente minha relação com eles.

Não era coincidência e muito menos verdade a idéia de ver nos negros um perfil mais violento e agressivo, um instinto bestial. Sabemos todas e todos que isso foi construído ao longo da história racista da sociedade em que vivemos. Assim como sabemos que separar famílias negras era uma das estratégias mais básicas, óbvias e cruéis para dominação de negras e negros escravizados. Hoje teoricamente não somos mais escravizadas/os, mas as estratégias de dominação e separação continuam vivas e atuantes. Não nos identificamos como iguais, ao contrário, somos incentivadas/os ao ódio, incentivo que acontece através das guerras de facções, da manipulação por teorias religiosas e hoje, notavelmente pela segregação e oposição proporcionada por pensamentos políticos eurocêntricos. Uma onda de militantes negras que odeiam militantes negros cresce a cada dia.

Como eu disse antes, supostamente me identificava em um grupo de militância que entendia não ser contemplado em nenhum outro. Diante disso, o diálogo com o movimento negro - uso o termo para os movimentos/organizações negros de uma forma geral – era apresentado como desnecessário em vistas de um movimento considerado machista. A questão é que o feminismo negro dialoga com o feminismo branco (racista), dialoga com partidos de esquerda (racistas e machistas) e dialoga com o marxismo (racista e machista), além de outros com as mesmas “peculiaridades”. Nesses casos é percebida a necessidade de ocupação dos espaços, de diálogo e de contribuição no processo de “desconstrução” dos opressores. A grande questão é: não é no mínimo estranho que o movimento negro seja um espaço considerado perdido, abandonado, defasado e impossível enquanto todos os outros são no mínimo considerados espaços de disputa? Não é estranho, é um desdobramento do racismo: dos relacionamentos até a construção política, aprendemos que os homens negros são um caso perdido e não valem à pena.

Enquanto nos basearmos em teorias eurocêntricas seremos sempre levadas a reprodução e legitimação do racismo. É duro assumir, é duro ouvir, mas não há outra resposta e não adianta por a palavra “negro” no final pra resolver o problema. Enquanto nutrirmos uma visão de mundo branca seremos incapazes de lutar por uma real libertação enquanto negras. É impossível lutar contra o racismo através de uma rivalidade de gênero que é uma necessidade e uma criação eurocêntrica. Quando falamos de patriarcado, estamos cientes de que o homem é entendido como pilar principal nesse tipo de sociedade, como referência e como base estruturante. Sob esse prisma, não por acaso uma das estratégias do racismo é neutralizar o homem negro seja o deslegitimando, invisibilizando, criminalizando ou matando. Tornar os homens negros inimigos ou simplesmente invisíveis tem sido um bom negócio. E infelizmente a militância feminina vêm sendo usada nesse processo. Sendo através da contribuição para um ideário de violência sobre os homens negros ou através de lutas por políticas públicas exclusivamente com recorte de gênero servimos como base limitadora para uma luta que não é nociva a estrutura racista em que vivemos.

É óbvio e repetitivo dizer que homens negros são os que mais morrem. Mas esse é um dado básico, irrefutável e portanto é bom que esteja aqui para sabermos que a tal pirâmide de opressões é uma falácia. Mas para além dos dados, os argumentos subjetivos – muito usados na legitimação dos movimentos atuais – também não se sustentam para a construção da “rivalidade” entre negras e negros. Auto-estima, relacionamentos amorosos, inserção política e acadêmica, mercado de trabalho e saúde são questões muito caras à negras e negros, não de forma maior ou menor, mais diferente. Vejamos indicadores sobre dependência química, inserção universitária, abandono e segurança pública por exemplo. Na saúde pensemos nos dados e pautas sobre a saúde do homem negro, que são quase nenhum. Exercitemos o suposto pensamento crítico de que dispomos para analisar qual seria o real privilégio que um homem negro dispõe por ser homem. A violência praticada contra a mulher pelo homem negro não é legitimada pelo pensamento social, é encarcerada. A superioridade nos relacionamentos exemplificada pela infidelidade, por exemplo, gera abandono e desestruturação familiar. As melhores inserções no mercado de trabalho se dão em campos predominantemente tecnológicos e executivos, o que os afasta dos espaços de intelectualidade ligados ao pensamento social e filosófico. Poderia criar uma série de apontamentos, mas vou parar por aqui perguntando: Privilégios do homem negro ou estratégia racista de segregação do povo negro?

Quando falamos de machismo estamos nos referindo a uma construção social. Precisamos então lembrar que a atual organização da sociedade é baseada em valores brancos, eurocêntricos, assim como todos os seus desdobramentos e formas de violência, assim como as formas de luta e construções filosóficas que surgem dentro dela. Apenas retomando uma perspectiva de luta baseada em valores afrocentrados conseguiremos nos libertar das limitações e estranhamentos no que diz respeito aos nossos irmãos negros. Apenas entendendo que essas violências, essas opressões e esses valores não nos pertencem, não contemplam e não nos representam poderemos caminhar rumo a superação do racismo e das formas de exploração e violência exercidas sobre a mulher negra. Somente compreendendo e buscando conhecimento negro conseguiremos enegrecer nossas perspectivas sobre gênero de uma forma harmônica e satisfatória que não gere desdobramentos vazios, infundados e unicamente teóricos que só servem para causar mais segregação e dor. Unicamente resgatando nossa essência, filosofia e teoria negra conseguiremos nos enxergar como irmãs e irmãos e lutar como tais rumo a libertação.