terça-feira, 11 de setembro de 2018

A barriga e as bruxas


Fazia tempo que não dormia uma noite inteira. Todos os dias ouvia os pássaros cantando antes do amanhecer. Uns dias mais cedo, outros dias mais tarde. Mas todos os dias ouvia e assim as vozes de penas já não traziam o frescor de um novo dia, apenas lhe lembravam do cansaço. Todo anoitecer era mais um desafio do que um alívio. Uma sensação estranha gerada por tudo o que não tinha acontecido naquele dia e tudo o que aconteceria no próximo, ou não. Os dias passavam, sem que ela celebrasse conclusões ou respirasse encerramentos. Um eterno aguardar dos próximos momentos e vozes de pássaros pela manhã.

De todas as perguntas que havia feito nos últimos tempos já tinha se perdido entre as que eram importantes, as que não foram respondidas, as que trouxeram algum conforto e as que iriam continuar eternamente sendo perguntas. Não sabia o que fazer com as respostas e nem se queria mais delas. Afinal, por mais respostas que encontrasse, mais perguntas apareciam. E nunca vinha a paz ou o entendimento. Se via num eterno mar de questionamentos, uma maré de inquietações que nem movimento de maré tinha, pois parecia sempre cheia e transbordante, nunca baixa.

E assim seguia sendo espera, maré cheia, transbordante de tudo que lhe fazia parte. Cansada, “conflita”, conformada, latente, quase um encantamento inacabado em forma de gente. E por mais lua cheia que se sentisse, era na verdade sempre crescente.

Crescia-lhe não só a barriga, mas tudo mais que era possível e impossível acima dos limites do corpo. O estranho, o novo e o assustador se misturavam com o doce, o suave e o delicioso através de pessoas, de fatos, de sensações e descobertas. Havia virado bem mais caminho do que destino. E se conformou em estar assim: processo e não resultado, em parte e não mais inteira.

Foi visitada por boa parte dos sentimentos que todos conhecem e por uma parte significativa dos sentimentos que nem todos irão conhecer. Não precisava estar aberta a eles, era invadida. Descobriu que ao contrário dos sentimentos, que eram inevitáveis, pessoas podiam ser evitadas, mas isso não era menos desafiador e apavorante. Foi então visitada por sete bruxas em sete tempos e teve sete respostas para perguntas não feitas.

A primeira bruxa chegou em uma tarde amena, sem cor e sem muito movimento. Trouxe palavras duras, acusações e declarações de amor. Jogou tudo sobre ela, tirou-lhe todo o ar e todo o chão. E a lição que lhe deixou foi dura, tanto quanto é necessário ser duro um pilar de sustentação: “Somente você sabe o que você sente e o que você passa, ninguém mais. Por mais amor, ou ódio que lhe tenha.”

A segunda bruxa apareceu como o inesperado de uma estrela cadente que não desaparece. Trouxe o inacreditável, o improvável e contrário do que a razão estabelecia, o oposto do que tentavam lhe fazer desacreditar. Colocou sobre ela a proteção diante dos que tentavam manipular sua natureza. E mesmo sem que ela percebesse logo, abriu a jaula de seus instintos e possibilidades. Deixou uma lição complexa e transformadora: “Você não é sua escrava, mas sim o espaço potencial de todas suas realizações. Ninguém, nem mesmo você pode estabelecer impossibilidades sobre isso. Você é sempre possível.”

A terceira bruxa caminhou na sua direção com a rapidez de um raio. Despejou toneladas de apavoramentos e solidões. Tirou-lhe o sono, as certezas, a confiança extrema. Mostrou a ela que tudo podia ser, ou não ser e que na dúvida deveria se questionar sempre, mesmo com medo da resposta. Costurou nela uma parte de responsabilidade por tudo, exatamente tudo, que lhe ocorria, ao mesmo tempo em que deixava soltas as pontas e meios que não eram da sua competência. A lição estranha conseguiu ser ao mesmo tempo simples e difícil: “Você tem o poder de escolher tudo, mas de dominar por inteiro nada. Por mais controle que tenha, por melhor que faça, nada está totalmente em suas mãos. Isso não é bom nem ruim, é apenas o jeito como as coisas são.”

A quarta bruxa fluiu para ela soberana do incompreensível e inquestionável tempo que todas as coisas levam pra ser. Não chegou, nem foi embora, apenas esteve para mostrar que o que acontece, simplesmente acontece, num fluxo nem sempre determinável ou visível. Envolveu-lhe num emaranhado de momentos, “pode-seres” e “incertabilidades”. Transbordou-a com os possivelmentes e dificilmentes que como frutas só poderiam ser consumidos após amadurecer. Mostrou-lhe a lição mais conhecida e menos acreditada da natureza: “O tempo é necessário para tudo e tudo que se faça para abreviá-lo ou controlá-lo é apenas uma ilusão que ele por bondade permite aos que não conseguem compreendê-lo.”

A quinta bruxa foi tornado. Intensa, revolta, destruidora. Atingiu-a com a voracidade dos pensamentos alheios, tentou soterrá-la com as achices e más resoluções dos outros. Empurrou certezas externas sobre suas certezas, tentou aplacar sua fé, mexeu com cada centímetro da sua estrutura de confiança no ser humano. Abalou sua empatia, sua solidariedade, seu altruísmo. Pegou algumas de suas belas sementes e plantou em terrenos inférteis, mostrando que nem sempre vão florescer. E por mais cruel que possa ter parecido, a fortaleceu imensamente. Ensinou que: “Nem tudo que se oferece se recebe e não é errado não desperdiçar o que se tem bom com quem tenta retribuir com o que é ruim. Auto-proteção não diz respeito a negar ao outro e sim a não negar a si mesma.”

A sexta bruxa, como após toda tempestade, foi calmaria. Silêncio. A possibilidade de simplesmente não ser nada além do necessário. De assistir aos desfechos, ouvir as conversas, esperar as decisões e apenas seguir os mapas já desenhados. Empurrou-a ladeira abaixo pras chegadas desconhecidas, num entremeio feito de caminhares e “aguardes”. Sem dor, sem sofrimento, apenas de “esperações”. A sutileza da sua lição não a simplifica nem de longe: “É melhor apenas caminhar para um rumo desconhecido do que correr afoita em um sentido errado.”

A sétima e última bruxa foi portal. Dimensão aberta de histórias que serão escritas. Botou em seu colo um mundo de acontecimentos que nunca houveram e que não se sabe se haverão. E deixou espaço pra mais um mundo deles, inimagináveis, mas possíveis. Choveu ansiedades, ventou medos, molhou convicções, orvalhou fé, germinou esperança. Assim como todas as outras, mas mais do que elas - por ser um pouco da cada uma -, é presença, continuidade. Uma não concretude, rica de tudo que poderá ser. De todas as dores e alegrias que poderão se tornar. De tudo que só através dela poderá existir, ou não. Assim como ela sua lição não é ponto final, mas sim papel em branco: “Uma infinidade de coisas pode acontecer ou não. Você só poderá saber sobre elas quando passarem a ser realidades concretizadas ou não vividas. Não se pode aguardar uma infinidade e muito menos sofrer por ela.”

Seguiu lua crescente, as vezes sentindo-se cheia, comemorando as chances de ser nova após cada momento em que parecia ser minguante.






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Imagem retirada do Blog: ilealaketuasebabaonanlayo.blogspot / Autoria desconhecida