domingo, 26 de abril de 2015

Vazio


Nos últimos dias vaguei mais do que de costume
Desviei mais
Procurei mais
Perdi mais tempo

Nos últimos dias falei menos que deveria
Briguei menos
Sorri menos
Fugi do vento

Hoje caminho tão cheia que me arrasto por entre as vielas das minhas idéias
Pesada, lenta
Sem espaço em mim para mais nada além do vazio
Vazio é coisa que preenche
Mas não mata a fome
É coisa que pesa
Mas não esquenta

Tô indo!
É criança chamando
Deve ser sede
Sede é coisa que eu gosto em criança
Criança tem sede de tudo
Eu já tive também
Mas a vida vai aguando a sede
Até que um dia a gente se contenta só com água
Sem cor, sem gosto
Só mesmo pra matar a sede

Nos últimos dias vaguei mais do que de costume e falei menos do que deveria
Mas é porque ando tão cheia desse vazio, que me arrasto devagar.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

As pretas que ouvi falar


Ah! Como eu queria ser dessas moças que eu ouço falar!
Me disseram de umas pretas pra dentro da cidade que andam vindo diferente.
Devem ter dinheiro, devem ter direito, devem bem ter feito algum trabalho pesado.
Ah! Como eu queria um cabelo arranjado.
Esses panos bem caros para andar por aí.
Aprender a dançar, fazer cena... cantar! Imagina?!
Escrever poema.
Me falaram que essas pretas são fortes, que mexem com coisa da África.
Eu bem que queria andar de avião.
Voar por cima do mar, daquele azul todo que eu levo três horas de ônibus pra ver de perto e não entrar.
Ah! Como eu queria ser igual essas pretas que eu ouvi falar!
Tudo moderna, mas meio às antigas
Que cabe em revista, que sabe dançar
Olhar todo mundo por cima
Ser rainha de um reino qualquer que não existe
Deixar as crianças correr, porque são filhos de rainha
Os filhos delas devem correr, devem ser fortes, não têm que ter medo
Ah! Como eu queria ser dessas pretas
Contaram que elas brigam e festejam e que assim o tempo passa
Falaram que trabalham duro e que lutam todo dia pra vida acontecer
Pensando aqui comigo, levo jeito pra coisa!
Vou botar as idéias numa trouxa
A coragem num carrinho
E me mandar pra dentro da cidade
Vou é sair dessa margem que deram
Eu vou ser igual a essas pretas que eu ouço falar
Só vou ajeitar aqui dois ou três sonhos e pegar um casaco.

domingo, 19 de abril de 2015

Racismo e subjetividade: pressões e silenciamento nas relações afetivas

Uma das formais mais sutis e cruéis de silenciamento do racismo são as pressões que nós, negras e negros sofremos dentro de nossas relações afetivas. Entendendo que pelo processo de miscigenação elencado a alienante crença do mito da democracia racial somos predominantemente inseridas/os em espaços raciais “relativamente” mistos, nossas relações afetivas são perpassadas por reproduções racistas o tempo inteiro.
Não me refiro a reproduções racistas na imagem popularmente mais violenta da expressão, mas sim nos seus aspectos mais refinados - que não significa menos cruéis.
Enquanto integrantes de núcleos familiares em geral interraciais, por exemplo, somos constantemente cobradas/os pela instituição família a abrir mão da luta por direitos em prol de laços de afetividade "superiores" as relações de desigualdade estabelecidas. Lutar e se posicionar politicamente é então percebido com um ato de traição a valores e sentimentos. Somos culpabilizadas/os por identificar o outro como ser social, que dispõe de privilégios de acordo com suas formas de inserção na sociedade, privilégios estes que não se extinguem no momento em que consideramos as relações familiares. Somos pressionadas/os a assumir sempre posicionamentos políticos subjetivos e relativizados, definindo pessoas as quais se apliquem e locais nos quais seja adequada sua exposição. Não recebemos apoio para uma luta real por direitos, porque ela implicaria dizer "você, mesmo tendo vínculos sanguíneos/afetivos comigo, não é igual a mim, dispõe de privilégios, é racista e precisa repensar e abrir mão de boa parte de seus valores".
Dentro das relações de amizade o processo se desenvolve de forma similar mesmo que não haja a existência de laços supostamente "indestrutíveis". Mas ao mesmo tempo em que não existem laços obrigatórios há uma ligação direta com a inserção em círculos sociais e portanto um papel fundamental na construção e manutenção de nossa autoestima. A rejeição por parte de amigas/amigos é um fator desestruturante na nossa construção social. E da mesma forma que nas relações familiares a cobrança por posturas relativistas que não visualizem o outro como ser social e portador de privilégios é freqüente.
As pressões que nós negras e negros sofremos dentro de relações mistas faz com que muitas vezes nos sintamos culpados por lutar por nossos direitos, traindo relacionamentos pessoais ou ferindo diretamente pessoas com quem nos relacionamos. Junto a isso, o julgamento moral, feito sob uma perspectiva falsamente igualitária, de nossas ações como desnecessárias, agressivas ou ingratas por exemplo, fundamenta uma rejeição a negras e negros que se posicionem de forma efetiva na luta contra o racismo e suas diversas formas de dominação.
Com base nessas reflexões, muito primárias sobre alguns aspectos de nossas relações pessoais, podemos entender que culpa e rejeição são fatores que passam a fazer parte constante das estratégias de silenciamento e neutralização que nós, negras e negros sofremos cotidianamente. Entender que o racismo, para além de ações pontuais constitui um sistema complexo de opressão que perpassa todos os níveis de construção social, indo dos espaços mais coletivos aos mais individuais, não é uma tarefa fácil e muito menos reconfortante, mas é fundamental para a desconstrução dos valores morais que o legitimam e reproduzem.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Uma rápida idéia sobre cotas

Para falar de cotas um dos primeiros passos é acabar com a idéia de que para estudar em uma universidade pública basta estudar.
Os vestibulares não são sistemas de avaliação efetivos, são simplesmente ferramentas de exclusão que separam e classificam pessoas de acordo com o conhecimento que conseguem decorar. Por mais elaboradas e integradas que sejam as questões, não é a capacidade de problematizar, interpretar ou propor soluções - fundamentais nas ciências humanas e exatas - que é avaliada, mas sim a quantidade de informações retidas.
Para reter informações, muito além de um potencial individual, são necessárias condições externas favoráveis: tempo para leitura e memorização, estabilidade no meio social que permita a dedicação a esse processo, rotina e também o desenvolvimento prévio de uma série de percepções que facilitam o processo de assimilação e que em geral são estimuladas através de uma educação que não é a disponibilizada no sistema público.
Podemos concluir que as pessoas aprovadas no vestibular não são necessariamente as mais inteligentes, mas sim as que conseguem compor um "perfil sócio-intelectual" pré-definido.
Existem muitas pessoas capacitadas de acordo com os parâmetros educacionais vigentes que não são aprovadas nos vestibulares. Um dos principais motivos é óbvio: não há vagas suficientes para todos os capacitados. E se não há vagas suficientes obviamente é necessária uma classificação. Classificação esta que privilegiará predominantemente o perfil "sócio-intelectual" já mencionado.
O fato de uma pessoa fazer a seleção por dois ou três anos pode parecer apenas um indicativo de que ela demorará mais para se formar, mas já define quem se forma antes, quem se insere antes no mercado de trabalho, quem poderá fazer determinados concursos públicos e quem vivenciará diferentes conjunturas políticas no exercício profissional.
Entender que grupos socialmente discriminados dificilmente pertencerão ao perfil “sócio-intelectual” pré-determinado é um raciocínio praticamente óbvio e diante da comprovada ineficiência dos sistemas de avaliação de ensino garantir que esses grupos tenham acesso a educação não é privilegiá-los, mas sim buscar alternativas de superação das desigualdades e de suprimento das deficiências excludentes do sistema educacional.
Políticas afirmativas, popularmente chamadas de cotas, não permitem que pessoas menos qualificadas ingressem na universidade. E muito menos que a "qualidade dos estudantes do curso noturno diminua" como já ouvi de uma docente. Políticas afirmativas - de forma inicial e não suficiente - permitem que de certa forma tentemos superar a primeira ferramenta de exclusão racial e econômica estabelecida nas universidades que é o vestibular.