quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Do carnaval que ainda não acabou...

Eu não ia me pronunciar sobre a questão da Beija-Flor, mas como ainda está rendendo, eu não vou conseguir.
Serei o mais sucinta e direta possível, juro que não quero desenvolver o tema.

Muito me preocupa quando pessoas compartilham um texto onde há a afirmação de uma suposta vergonha para os cariocas pelo título da Beija-Flor.
Para começar: o povo carioca, as pessoas do samba e a comunidade de Nilópolis não são culpadas da exploração e da ditadura em Guiné-Bissau e insinuar que por torcerem por um escola de samba elas são coniventes pra mim é no mínimo culpabilizar uma população que também é excluída e explorada. Pessoas oprimidas, excluídas e exploradas não podem se envergonhar/responsabilizar por uma opressão que também sofrem, em escalas diferentes dependendo de que cariocas estamos falando, mas sofrem.

Outra coisa, não vamos cair numa falácia de "eu sou charlie" de novo. Vocês acham que todos os anos o dinheiro do mega evento que se tornou o carnaval carioca vem de onde? Das feijoadas? Por favor.
Sempre foi sabido - eu acho né - que o dinheiro envolvido no carnaval tem ligação com lavagem de dinheiro, desvio de verba, jogo do bicho e outras práticas, morte.. Morte sim meu caros, indiretamente, ou diretamente mesmo. E isso não é culpa das comunidades das escolas e sim de um processo de apropriação da manifestação cultural que é o carnaval pelo capital e pela classe dominante: se apropria, explora, desconfigura, exclui.

Entendam, eu nunca direi que não tem problema a Beija-Flor ter recebido dinheiro de um ditador e nem nego tudo que isso representa. Acho um absurdo sim. Agora acho equívoco culpabilizarmos o povo carioca por isso, porque essa é uma estratégia antiga de moralizar sistemas de exploração ao invés de apontar e problematizar suas raízes.
E o apoio que escolas recebem da prefeitura/estado/governo federal? Sabia que tem gente que morre de fome aqui também? E aí não te incomoda também não? E o dinheiro que certa emissora de TV dá pra determinada escola? Essa daí também apoiou a ditadura e a grana não é das mais limpas.. E as grandes empresas que patrocinam? Vocês acham que nesse dinheiro não tem exploração e morte? E só pra constar: e o dinheiro do governo que financia inclusive o SEU CARNAVAL de rua? Você não acha que salvaria milhares de vidas de pessoas que estão morrendo de fome no seu país?
Repito, eu nunca vou apoiar ou dizer que não importa de onde vem o dinheiro da Beija-Flor. Só acho que problematizar isso tem que ser feito de uma forma contextualizada, imparcial e principalmente sem que haja moralização ou culpabilização de uma cultura de origem pobre e negra que foi apropriada e distorcida. Trazer esse questionamento à tona é importante, sim, muito. Mas me desculpa ficar dizendo "é dinheiro de ditador" porque não se identifica com a escola não soma em nada. E se fosse a Portela, ou a Mangueira? Será que teria a mesma repercussão? Eu sinceramente não tenho certeza.

As escolas de samba são cultura do povo, cultura de pobre, cultura de preto. E há muito anos vêm se falando que isso não existe mais e que viraram espaço das elites. Nos camarotes pode até ser. Nos carros alegóricos pode até ser. Nas roupas caríssimas de destaque de chão também pode ser. Mas nas quadras não é. Na rua não é. Na Av. Presidente Vargas em dia de desfile não é. Nos barracões, nas máquinas de costura, na ferragem e no adereço não é. Ainda somos maioria, aliás, somos maioria em tudo nesse país. Então não vamos simplesmente deixar que nos tornem cada vez mais alheios a nossa cultura e ao que nós mesmos produzimos. Vamos ocupar cada vez mais e de todas as formas possíveis esses espaços, porque isso também é uma forma de resistência e luta. Vamos ficar atentos aos enredos, ao financiamento, isso também é controle social.
Luta tem em tudo que é canto. Para quem está atento até mesa de biriba pode ser cenário de opressão. E lutar não é dizer "isso não presta, tá errado, aiaiai que feio, sai daqui"... Mas isso já é desenrolo pra outro texto e eu disse que não ia me estender....

"e cada uma ala da escola será uma quadrilha
a evolução já vai ser de guerrilha
e a alegoria um tremendo arsenal
o tema do enredo vai ser a cidade partida
no dia em que o couro comer na avenida
se o morro descer e não for carnaval"
(O dia em que o morro descer e não for carnaval - Wilson das Neves

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Branca de Neve Negra: mais uma estratégia do mito da democracia racial?

A repercussão da atuação de Cacau Protásio como Branca de Neve no desfile da Escola de Samba União da Ilha traz à tona uma importante reflexão.
Num contexto onde o racismo e os padrões de beleza destroem a autoestima de meninas e mulheres negras a escolha da atriz para representar uma princesa de contos de fadas parece uma genuína ferramenta de luta contra a opressão.
Mas é importante não cair no erro de pensar que representatividade é apenas se inserir na cultura da classe dominante. Ocupar espaços é sempre importante e preciso, porém pensar em suas conseqüências é fundamental.
A personagem Branca de Neve vive sua história em uma determinada região do mundo, retratando um povo e todo povo tem e sempre terá características físicas. O fato de ser branca por si só não torna a personagem racista. O racismo se desenvolve, por exemplo, através do consumo massificado das culturas brancas de origem européia e norte-americana que se tornam referências e padrão para a sociedade ao serem consideradas melhores que as demais.
Simplesmente colocar atrizes negras ou bonecas negras no lugar de pessoas brancas para representar personagens, originalmente brancos, pode ser perigoso ao contribuir com o processo de deslocamento de identidade cultural que já é conhecido entre as estratégias de dominação e exploração dos povos. Tornar a cor da pele um mero “detalhe” é uma das bases da construção do mito da democracia racial.
Não se trata de incentivar uma segregação entre as culturas e povos, mas sim de garantir que a identidade e cultura negra não sejam apagadas através de uma pseudo representação do povo negro em histórias que não são originárias de suas tradições.
Não precisamos nos inserir nas histórias e nas culturas hegemônicas para buscar aceitação. Precisamos valorizar a história e a cultura africana e afro-brasileira, nos sentirmos representados nelas, lutar por espaço, respeito e reconhecimento para elas.
Obviamente, enquanto não há igualdade e respeito entre as raças/etnias, esse tipo de representação é sim importante, principalmente para a autoestima das nossas crianças. Mas é preciso não perder o foco da luta por uma realidade onde todos os povos e culturas tenham suas histórias valorizadas e preservadas. Onde todas as culturas tenham seus direitos garantidos e desfrutemos de igualdade para poder escolher como vamos nos representar e com quem vamos nos identificar.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Passistas femininas: resistência e autoestima da mulher negra

Tenho pensado muito sobre o significado de ser passista. Por algum motivo extraordinário as pessoas ficam extremamente surpresas quando descobrem que sou passista de escola de samba. Mas apenas as pessoas que me conhecem nos espaços acadêmicos, de trabalho ou de militância, ou seja, as pessoas que me vêem expressar minhas opiniões e posicionamentos políticos. Para essas pessoas, por mais que elas não digam, ser passista contraria todos esses posicionamentos. Para essas pessoas ser passista é muito pouco ou é inapropriado para quem “tem consciência”.

Ser passista no pensamento dessas pessoas é corresponder a um estereótipo sexualizado da mulher negra, é incentivar o pensamento sexual dos turistas estrangeiros, é se exibir e se vender. E isso é um grande e grave equívoco.
As passistas surgem dentro da cultura das escolas de samba como o reconhecimento das mulheres da comunidade que melhor representam a dança do samba. Essas mulheres têm basicamente a função de defender o pavilhão de sua escola e conquistar a simpatia e admiração do público. Representar o pavilhão de uma escola significa representar toda uma comunidade, uma região e o trabalho de muitas, mas muitas pessoas. E fazemos isso através da nossa dança e dos nossos corpos. É preciso lembrar que no Brasil as concepções que temos de corpo e vestuário são embasadas por valores predominantemente europeus. Ou seja, nossos hábitos e costumes foram sim resultado de “mistura” da cultura de negros, indígenas e brancos, mas foram os valores brancos que moralizaram essa construção, por uma questão óbvia de dominação. Então, se hoje, mesmo em um calor de 40° usamos calça comprida e blusa de manga para estarmos “sociais” é pela moralidade européia que nos é imposta. Se hoje temos danças como o balé consideradas como clássicas e o funk e seus movimentos discriminados, agradeçamos a essa moralidade que hierarquiza como clássico e culto o que vem da cultura branca e como inapropriado e inferior o que vem da cultura negra.
A criminalização e a inferiorização da cultura negra sempre estiveram presentes: o próprio samba que hoje é exaltado, já foi marginalizado e criminalizado. A questão é que a resistência das manifestações culturais populares faz com a classe dominante, vendo que não pode destruí-las, passe a querer se apropriar delas. E isso aconteceu com o samba e com seus símbolos. E quando há essa apropriação outra estratégia também usada é o esvaziamento dos significados dos elementos das culturas. Ou seja, tenta-se distorcer as reais representações que aqueles elementos têm para aquela comunidade, buscando dessa forma tirar seu potencial revolucionário.
As passistas de escola de samba têm um potencial revolucionário: contra o racismo e contra o machismo também. Ser passista é o ponto alto na autoestima de muitas meninas e mulheres negras, muitas vezes o único. É o momento em que nós mulheres negras assumimos nosso posto (de direito) de referência e orgulho para nossa comunidade. É o momento em que nossas meninas mais novas nos olham e se espelham para construir sua feminilidade. É o momento em que nossos homens reconhecem a nossa beleza. Ser passista é um espaço de resistência da mulher negra.
Entendo e concordo quando Lélia Gonzalez diz que os desfiles das escolas de samba são um momento de atualização do mito da democracia racial, pois viramos princesas durante quatro dias e depois voltamos ao estereótipo de doméstica. Eles funcionariam como uma válvula de escape das tensões sociais. Mas sabemos que não fomos nós negras/os, nossos hábitos e tradições que criaram esse mito. O racismo através do mito da democracia racial se apropria de determinados aspectos culturais para dizer que há uma igualdade. Além disso, o que é preciso entender também é que não se é passista durante quatro dias e nem de dezembro a fevereiro. Quem é passista, é passista 365 dias do ano. Ser passista não é uma simples atividade que se desenvolve, é uma realidade de vida. O corpo, a mente e os sentimentos de uma passista são peculiares de uma passista. A dedicação, os relacionamentos, o trabalho, o estudo, tudo da nossa vida em algum momento e de alguma forma está ligado a essa arte que carregamos. E é orgulho dessa arte que muitas vezes nos sustenta e fortalece para enfrentarmos as violências de uma sociedade desigual. É o orgulho dessa arte que faz com que por mais que tentem fazer com que olhemos para o chão e que sejamos subalternos, continuemos olhando para cima, enfrentando preconceitos e cultivando a nossa realeza interior.
É muito difícil uma passista viver de seu samba financeiramente. Mas mesmo que em escala pequena ser passista promove mudanças nas vidas das meninas e mulheres negras. Uma simples apresentação pode fazer com que uma menina negra de comunidade circule por novos espaços da cidade e sabemos que vencer essas limitações que a precariedade de transporte e de segurança nos impõem é um passo muitíssimo importante. Pertencer a um grupo também promove grandes mudanças, visto que comprovadamente na adolescência mulheres negras sofrem muito com a dificuldade de inserção e aceitação nos grupos sociais e têm mais problemas de autoestima. Participar de um ambiente seguro, coletivo e de troca de saberes numa experiência prazerosa é também uma oportunidade diferenciada para jovens e mulheres negras que, sabemos bem, em geral não tem acesso à grande maioria das atividades culturais da cidade. Ou seja, ser passista traz oportunidades e vivências fortalecedoras para a mulher negra.
Sobre a sensualidade, bom, precisamos entender que uma das características dessa sociedade patriarcal é punir e julgar as mulheres que dispõem de seus corpos e de suas belezas como querem. O uso da sensualidade é condenado, a liberdade de expressá-la é punida violentamente. O pensamento moralista/cristão que permeia as bases do imaginário social demoniza a sensualidade e sexualidade. As mulheres negras foram sexualizadas, seus corpos animalizados, suas posturas e características gestuais ridicularizadas. Mas esse é um processo externo a nós e também é parte daquela história lá de cima de se apropriar de determinada cultura e esvaziar seus símbolos. Nesse ponto uma estratégia importantíssima de resistência é não pensar nossos corpos, nossa sensualidade e nossa sexualidade a partir dos princípios moralistas eurocêntricos. Criminalizadas e demonizadas, principalmente pela fé cristã, a beleza, a sensualidade e a sexualidade nessa sociedade patriarcal só deveriam ser usadas para a satisfação dos homens ou no processo de construção das instituições sociais aceitas (casamento, geração de filhos). Porém usar a beleza e a sensualidade sempre foi nos ensinado através do Itans da Yabás como uma estratégia memorável e eficiente de luta, além de serem características respeitadas, consideradas bênçãos fundamentais para a construção e o equilíbrio do mundo.
Repito: ser passista é um ato de resistência da mulher negra. É uma forma de nos mantermos nos espaços da nossa cultura e de nos apropriarmos das oportunidades que hoje eles oferecem. É uma forma de lutarmos para que o real significado de ser passista não se perca. É uma forma de irmos contra tudo e todos que dizem que não temos direito sobre nosso corpo, que nossa arte não é clássica e que nossa cultura não é apropriada. É uma forma de pensar nas nossas meninas pretas e seus olhares de admiração e nas nossas pretas mais velhas e seus olhares de saudade e realização.
Peço sinceramente e de coração que nunca desistamos de passar a nossa mensagem, da forma como NÓS sentimos, como NÓS aprendemos, como NÓS vivemos. Da forma como NÓS herdamos. Por mais que TVs e jornais interpretem e desconstruam. Por mais que estrangeiros “confundam”, por mais que nossos próprios homens reprovem. Peço que mantenhamos o nosso orgulho de sermos mulheres negras, representando a cultura negra, levando a bandeira de negros e pobres.
O mito da democracia racial faz com que, para a sociedade, tenhamos “quatro dias” como rainhas. E não precisamos abrir mão deles. O que precisamos é enfiar goela abaixo da sociedade nossas coroas e mantos nos outros 361 dias do ano, sem nenhum passo atrás.

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