sexta-feira, 8 de julho de 2016

Ação e Reação: reflexões sobre o caso Micah Xavier Johnson

A primeira reação que tive ao saber da notícia do caso Micah Xavier Johnson, onde durante um protesto do Black Lives Matter em Dalas, Johnson atirou e matou policiais norte americanos foi pensar: Olodumare nos proteja, a reação deles será violenta, agora é que irão nos matar.
Mergulhei num mar de angústias, dúvidas e certezas e percebi que o caso é muito mais complexo do que podemos pensar em um primeiro momento.


A primeira questão: O medo da reação branca.
Para começar explico que quando falo em "nós" me refiro a pessoas pretas, quando falo "eles" me refiro a pessoas não pretas. Seguindo..
A primeira angústia que senti foi o desespero de termos nos tornado alvo fácil, com justificativa para sofrermos com a vingança da polícia dos Estados Unidos. Agora eles iriam nos matar, entrar em nossas comunidades, atirar, violentar, agredir qualquer uma/um que fosse preta/o. Agora teríamos uma "imagem suja" perante a sociedade, que compreenderia as atrocidade cometidas como uma "resposta", uma correção necessária e ficaria cega diante dos crimes cometidos pelo Estado.
A questão é: isso já acontece. Todos os assassinatos de negras e negros cometidos por policiais já são a concretização dessa prática. Já nos matam todos os dias, já tripudiam de nossa existência, já destilam seu ódio violentamente contra nossas comunidades sempre. E o imaginário social já legitima isso, já entende que casos "acontecem", já nega que sejam crimes, já nos enxerga como marginais e sendo assim passíveis de correção e condenação sem julgamento. Nossa imagem é suja antes mesmo que possam ver nossos rostos, fazemos por merecer a morte apenas por estarmos vivas/os.
Então, se a reação branca seria nos matar, nada se acrescentaria de novo na dinâmica internacional de genocídio do povo negro.

A segunda questão: O medo da alienação preta.
Num contexto em que o povo preto se auto-odeia, por ter absorvido uma referência imposta da superioridade branca, o ativismo preto já é criminalizado. Ao mesmo tempo em que brancas e brancos nos matam, nos humilham, nos ridicularizam e nos exploram, repetimos mantras como "somos todos iguais", "a cor da pele não importa", "não podemos discriminar ninguém" ou (um dos que mais escuto) "não podemos reagir ao ódio com ódio". Esses pensamentos foram enfiados no nosso imaginário coletivo principalmente através da imposição dos valores tradicionais cristãos, tendo a religião se demonstrado uma das armas mais poderosas na construção das bases da supremacia branca. Se analisarmos os dez mandamentos de forma crítica por exemplo, observaremos que eles tem um papel fundamental na manutenção da ordem social: não matar, não roubar, não cobiçar as coisas alheias, por exemplo, podem fazer referências diretas à submissão e ao conformismo diante das desigualdades sociais. A questão é que dogmas que a princípio poderiam garantir a paz e a igualdade, impostos e absorvidos por povos dominados cumprem basicamente o papel de adestradores sociais.
Pensando sobre isso, e sobre como nós fomos atingidos e contaminados pela supremacia branca, fiquei angustiada com o fato de ficarmos ainda mais longe de obter legitimidade diante de nossas irmãs e irmãos pretos. Defender que pretos e brancos são diferentes e não querer "se juntar" e sim ter o devido direito ao poder é algo que causa mais pavor do que a expressão "cinco jovens negros foram assassinados". Direcionar alguma ação contra pessoas brancas seria então mais inconcebível que o inconcebível neste mundo onde o racismo existe, a supremacia branca existe, mas fazer qualquer ligação entre isso e pessoas brancas é um pecado (ironia do termo). As próprias pessoas pretas se voltariam contra o ativismo preto.
A mídia branca não exitou em gritar aos quatro cantos que Johnson era ativista negro e mesmo que ele tenha declarado atuar sozinho, fazer ligações através de suas redes sociais ao "Black Power" (Poder Preto) e movimentos como Novas Panteras Negras. Ou seja, usar o fato para comprovar a tese de que movimentos pretos são extremistas. Nos acusar de odiadores, assassinos e nos "igualar" no imaginário social aos que cometem o genocídio do povo preto, que a propósito, não são eles mesmos (ironia novamente).
A questão é: isso também já é uma realidade. Ativistas negros que defendem o mínimo de autonomia pro povo preto já são consideradas/os radicais, extremistas, odiadores de pessoas brancas, violentas/os, "racistas". E nenhuma iniciativa direta no sentido de explicitar essa linha de pensamento terá espaço em veículos de comunicação. O menor sinal de orgulho preto, a menor menção de poder já abre precedentes para julgamentos de exagero, apologia a violência e a segregação, vide a repercussão do clipe Formations de Beyoncé. O que é aceito, no que somos aceitas/os, ouvidas/os, o que "nos deixam" propagar e "até concordam" nunca será algo capaz de acabar com a supremacia branca e com a exploração do povo preto. Em grande escala, nossa imagem já é criminalizada e quando não é no máximo cooptada para construir um consenso, para forjar uma igualdade que não existe em nenhum país da diáspora.
Então, se a reação de pessoas pretas seria nos julgar extremistas e nos condenar por odiar brancas e brancos idefesos, nada se acrescentaria de novo na dinâmica internacional de genocídio do povo negro.


A terceira questão: a tristeza pela morte de um irmão

Sim. Micah Xavier Johnson era um irmão preto. Eu considero assim todas e todos africanas e africanos do continente e em diáspora. Longe de fazer qualquer referência idealizada e equivocada de África, traço essa irmandade como um referencial identitário político e de resistência. O que não tem nada a ver com homogeneidade ou amor romântico. Mais um homem preto, africano morto. Micah, ao contrário de milhares de atiradores brancos não estava entediado ou motivado por um sentimento de rejeição pessoal. Não era uma insatisfação dele com o mundo. E por mais que telejornais tenham tentado a resumir a "estar irritado com a morte de jovens negros pela polícia" sabemos que a motivação de Johnson era o acúmulo de séculos de assassinatos e violações. E se discordarmos da idéia de ancestralidade por julgarmos subjetiva e espiritualista, ao menos uma vida de agressões diárias à sua pessoa ou às pessoas do mesmo grupo social do qual pertence toda e todo negro tem. Acordar todos os dias e saber que alguém igual a você foi morta ou morto exatamente por se parecer com você mata um pouco de todas e todos nós a cada dia. Pensar que um irmão, no sentido político já mencionado, chegou à ações extremas e perdeu sua própria vida nos mata e desespera também. Johnson foi assassinado, gradativamente, até chegar diante da bomba da polícia de Dalas que o matou por "legítima defesa".

A quarta questão: o recado a pretas e pretos ativistas

Vamos destruir vocês. Isso que ouvi e li a cada matéria que consegui ter acesso. Em tempos onde Beyoncé, uma das maiores cantoras pop internacionais, começa a apresentar uma postura mais incisiva na defesa da vida do povo preto, o contra golpe na tentativa de criminalizar qualquer postura de resistência preta continua sendo desferido. Me pergunto quanto tempo demorará, se já não aconteceu, para insinuarem que a ação de Johnson poder ter sido incitada ou alimentada pelo clipe de Bey. Isso me preocupa, ao mesmo que me impele a pensar o quanto já estamos sem a possibilidade de retroceder e o quanto isso significa sacrifício. Mas também me leva a pensar o quanto a estratégia pode permitir que esse "sacrifício" quando iniciado por nós mesmas/os pode ser feito de forma estratégica, por exemplo: ao se ter poder econômico, visibilidade, etc.
A questão é: isso sempre existiu. Movimentos pretos sempre foram criminalizados e ativistas pretas e preto sempre execradas/os, perseguidas/os e neutralizadas/os.
Então, se a reação seria condenar e perseguir ativistas pretas/os nada se acrescentaria de novo na dinâmica internacional de genocídio do povo negro.

Para além dessas questões me pergunto sobre muitos outros pontos como não termos uma estrutura concreta de organização e resistência transnacional, sobre as doenças e dores que absorvemos a cada dia que passa, sobre como nossa fragmentação e a reprodução dos ideias de hegemonia brancos nos enfraquecem, sobre como o sistema anti negras e negros construiu muito bem suas bases e castra nossas tentativas e poda nossas energias para a luta, etc.

Mas a questão é que do medo, das angústias e das dúvidas não sobra um indício de que a ação de Micah Xavier Johnson possa ter sido um agravo na fúria da branquitude contra o povo preto. Não consigo vislumbrar espaço vazio, ainda não preenchido de ódio pela branquitude, para isso acontecer. A dinâmica do sistema anti negras e negros é muito maior, contínua e complexa do que podemos imaginar.