quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Equação do medo preto: 2 X + = ? (Duas vezes mais é igual o quê?)

Apesar da proposta do título, este texto não é exato. Não tem verdades, nem certezas absolutas. Como sempre, apenas vamos pensando.

Hoje pude assistir na faculdade apresentações de trabalhos de pesquisa de outros alunos. Foram muito bem apresentados. Mas sem demérito de nenhum dos meus colegas, pensei, de repente, que eu poderia ter apresentado também e que eu tinha plena capacidade de fazer o que eles estavam fazendo. Aliás, eu já tinha feito. Logo em seguida lembrei do porque não apresentei nada: muito mais do que tempo para fazer pesquisa, eu realmente não me sentia apta para falar de nenhum assunto assim, "academicamente falando". E então me dei conta de que não era uma questão de conteúdo, de experiência, era uma questão de uma preta se sentir pronta para ir em frente.

Para nós pretas e pretos nos sentirmos capazes de assumir a dianteira de determinados lugares nos cobramos quase sempre de muito mais tempo e muito mais qualificação do que uma pessoa branca se cobraria para tal. Eu não pretendo falar aqui sobre o quê e como a sociedade nos exige (que dá pano pra manga, pra gola, pra blusa inteira aliás), mas de como nós mesmas nos exigimos.

A pergunta principal é: Por que nós nos exigimos?
Já ouviu alguma vez na infância que VOCÊ tem que ser limpinha? Que VOCÊ tem que ser educado? Que VOCÊ tem que ser mais do que bom? Essas frases, que poderiam ser ouvidas por qualquer pessoa, para nós pretas e pretos vêm com outra entonação. Vêm com a idéia implícita de que temos que compensar algo. De que temos que equilibrar na balança de qualidades o peso do defeito de ser preto.
Ao longo de séculos nos foi tirado pelo racismo o orgulho de nossa origem. Foi colocado em nosso inconsciente coletivo através de várias formas de violência uma vergonha de ser preta ou preto. Nosso povo foi colocado como símbolo de inferioridade e de tudo que há de ruim socialmente falando.
O desdobramento dessa ideologia foi tão bem planejado e bem-sucedido que passamos a culpar nossa identidade preta pelas mazelas que o racismo branco impôs ao nosso povo. Um exemplo: se diante do grande número de desemprego, alto nível de exploração, ausência de oportunidades de qualificação e violência institucional uma parcela da população preta e pobre se envolve em atividades criminosas a culpa seria única e exclusivamente de sua índole marginal e jamais de todo sofrimento imposto pela dominação e exploração dos colonizadores. Desse pensamento também resultou a imagem de que não temos uma história, afinal se tudo que vem de nós é ruim, não há nada importante a ser lembrado. Precisaríamos então nos curvar e absorver tudo que vêm das boas referências da cultura branca.

Ok, dei uma volta ao mundo. Voltando.
Uma resposta pra pergunta acima poderia ser: nos exigimos porque no fundo acreditamos que somos incapazes, inferiores e duvidamos de qualquer qualquer bom desempenho que possamos ter. Isso tudo compõe um sentimento crônico chamado INSEGURANÇA.
A insegurança sempre faz com que exitemos muito em dar um passo adiante ou simplesmente faz com que a gente não dê passo nenhum. E ao contrário do que possa se pensar isso não tem nada a ver com zona de conforto: aliás é um lugar de desconforto imenso. É como ter uma bola de ferro invisível presa nos pés. É carregar um peso que torna a caminhada exaustiva e te impede de levantar a cabeça.
É nesse sentido que a gente olha lugares como faculdade e acha que não são pra gente, que a gente acha que não pode ser médica, que escolhe sempre as mesmas profissões "populares", que se convence sempre por outras referências "mais qualificadas".
Um comportamento que muita gente pode criminalizar como "acomodação", mas que é muito mais um grande medo de ir além do que tudo que te ensinaram que era o seu limite. Se você acredita que não tem asas não vai querer tentar voar.
Se foi construído no imaginário de todo um povo que ele não é capaz e que ele não é digno, como não estaria cravado dentro de cada uma e cada um de nós esses sentimentos?
Desse fato surge a alternativa: ser duas vezes melhor. Uma equação totalmente falha que aparentemente insinuaria que a competência de duas pessoas negras equivaleria a de uma pessoa branca. A idéia de ser duas vezes melhor não traz pra nós uma elevação de orgulho: ela reforça o pensamento que diz que somos inferiores, que somos menos, ela diz que somos metade do que o branco é.
Quando falamos de ser mais, de ser melhor, na verdade nunca está definido o que é isso. Se fosse pra comparar mais na matemática acho que seria tipo uma dízima periódica. É certo que nesse sentido não temos uma meta exata a ser alcançada. É uma eterna insatisfação e uma eterna não suficiência. Ou não damos passos adiante, ou damos passos carregados de um super esforço que vem imediatamente seguido de uma nova necessidade a ser superada, de uma série de provas que precisamos dar para justificar aonde chegamos e o que conquistamos, seja o que for. Nunca nos bastamos por nós mesmas, por nossa felicidade, por nosso querer: temos uma apresentação pronta, cheia de referências e de justificativas por sermos o que somos, "mesmo sendo" pretas ou pretos.

Ops. Outra volta ao mundo? Já chega.

Pensei sobre tudo isso e só entendi mesmo que grande parte da cobrança que faço a mim mesma é muito mais por insegurança e por me julgar incapaz do que por rigor e gosto pela excelência. Aliás, eu sou de Áries, nem ligo tanto pra perfeição assim. Ligo para movimento. E o movimento de dar o passo adiante tem que ser feito. E se a partir daí precisarmos dar passos atrás que o façamos. Mas vamos olhando as amarras, vamos soltando aos poucos. Vamos (re)apendendo a nos sentir capazes, fortes, seguras. Vamos aprendendo a acreditar que podemos sim. Podemos tudo.






sexta-feira, 26 de agosto de 2016

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Quanto mais nos esforçamos para "construir" e "desconstruir" dentro dessa sociedade mais ficamos incapazes de desenvolver uma perspectiva preta.
A "integração" é uma das formas mais cruéis de castrar nossa força de luta porque nos coloca em constantes situações de "escolha" nas quais somos levadas a ceder para ajustar nossa necessidade a da coletividade. Coletividade essa leia-se supremacia branca. Somos forçadas a relevar, a compreender, a calar, a aceitar o menos mal, a ter cuidado para não magoar a outra ou outro. Artimanhas dissimuladas para que possamos até nos indignar, mas não tanto. Para que possamos nos colocar como pretas, mas até aonde interessa.

É impossível construir ou descontruir um povo que tem como base a exploração de outro.
A negação de todos os direitos do povo preto é feita dentro dessa sociedade eurocêntrica, em todas as instâncias: seja por quem se considere conservador, como por quem se considere revolucionário. E o fato de negar não significa que um dia poderão nos "conceder", mas sim que sempre se reinventarão para continuar negando.

A intelectualidade preta sofre ataques dos mais repulsivos pelos setores ditos revolucionários brancos. Todos os movimentos sociais têm medo da auto-organização preta. Afinal, perderiam suas massas de manobras, sua força bruta. Perderiam quem no desespero de ter seus direitos e vozes calados soma com todas as suas forças esses espaços que se intitulam "a única opção" ou ainda "a melhor saída". Perderiam quem engrossa seus discursos de que "está ruim pra todo mundo". Perderiam seus casos trágicos, suas histórias de superação, suas vírgulas do "mas no caso dos negros é ainda pior". Perderiam muito nas suas disputas de poder dentro da sociedade da qual fazem parte organicamente. Então, a demonização do pensamento preto afrocentrado e de qualquer referência que venha de África e não inclua os processos e interesses brancos é a melhor forma de manter os corpos pretos a serviço da branquitude.

Existem incontáveis provas de que a revolução branca não nos inclui e de que nenhum movimento social é realmente integrador. Não vou me deter neles, basta abrir os olhos e pesquisar. Aliás, existem fatos óbvios de que a integração é uma falácia usada na mesma proporção da idéia de paraíso pós-vida usada pela fé cristã para a dominação e construção de consenso.
Nos dar conta dessa mentira e dessa impossibilidade de "aliança" é um processo doloroso, decepcionante e inclui reagir de uma forma diferente às "escolhas" que nos são dadas como óbvias. É um processo mais difícil, novo para a maioria de nós que nunca se deu o direito de pensar que poderia ser mais e que tem um lugar para si, um pensamento seu e todo um povo seu também. É um ato de coragem que não precisa começar cheio de definições, teorias e julgamentos, mas sim de confiança em uma história milenar de conquistas e lutas. É um ato que só acontece junto com o esforço de se reconectar a ancestralidade e deixar que venham à tona todas as certezas já marcadas em nosso íntimo sobre todas as mentiras, apropriações e violências que sofremos em todos os espaços da branquitude. É um ato que precisa ser, precisa acontecer, o mais rápido possível.

Bom dia.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Ação e Reação: reflexões sobre o caso Micah Xavier Johnson

A primeira reação que tive ao saber da notícia do caso Micah Xavier Johnson, onde durante um protesto do Black Lives Matter em Dalas, Johnson atirou e matou policiais norte americanos foi pensar: Olodumare nos proteja, a reação deles será violenta, agora é que irão nos matar.
Mergulhei num mar de angústias, dúvidas e certezas e percebi que o caso é muito mais complexo do que podemos pensar em um primeiro momento.


A primeira questão: O medo da reação branca.
Para começar explico que quando falo em "nós" me refiro a pessoas pretas, quando falo "eles" me refiro a pessoas não pretas. Seguindo..
A primeira angústia que senti foi o desespero de termos nos tornado alvo fácil, com justificativa para sofrermos com a vingança da polícia dos Estados Unidos. Agora eles iriam nos matar, entrar em nossas comunidades, atirar, violentar, agredir qualquer uma/um que fosse preta/o. Agora teríamos uma "imagem suja" perante a sociedade, que compreenderia as atrocidade cometidas como uma "resposta", uma correção necessária e ficaria cega diante dos crimes cometidos pelo Estado.
A questão é: isso já acontece. Todos os assassinatos de negras e negros cometidos por policiais já são a concretização dessa prática. Já nos matam todos os dias, já tripudiam de nossa existência, já destilam seu ódio violentamente contra nossas comunidades sempre. E o imaginário social já legitima isso, já entende que casos "acontecem", já nega que sejam crimes, já nos enxerga como marginais e sendo assim passíveis de correção e condenação sem julgamento. Nossa imagem é suja antes mesmo que possam ver nossos rostos, fazemos por merecer a morte apenas por estarmos vivas/os.
Então, se a reação branca seria nos matar, nada se acrescentaria de novo na dinâmica internacional de genocídio do povo negro.

A segunda questão: O medo da alienação preta.
Num contexto em que o povo preto se auto-odeia, por ter absorvido uma referência imposta da superioridade branca, o ativismo preto já é criminalizado. Ao mesmo tempo em que brancas e brancos nos matam, nos humilham, nos ridicularizam e nos exploram, repetimos mantras como "somos todos iguais", "a cor da pele não importa", "não podemos discriminar ninguém" ou (um dos que mais escuto) "não podemos reagir ao ódio com ódio". Esses pensamentos foram enfiados no nosso imaginário coletivo principalmente através da imposição dos valores tradicionais cristãos, tendo a religião se demonstrado uma das armas mais poderosas na construção das bases da supremacia branca. Se analisarmos os dez mandamentos de forma crítica por exemplo, observaremos que eles tem um papel fundamental na manutenção da ordem social: não matar, não roubar, não cobiçar as coisas alheias, por exemplo, podem fazer referências diretas à submissão e ao conformismo diante das desigualdades sociais. A questão é que dogmas que a princípio poderiam garantir a paz e a igualdade, impostos e absorvidos por povos dominados cumprem basicamente o papel de adestradores sociais.
Pensando sobre isso, e sobre como nós fomos atingidos e contaminados pela supremacia branca, fiquei angustiada com o fato de ficarmos ainda mais longe de obter legitimidade diante de nossas irmãs e irmãos pretos. Defender que pretos e brancos são diferentes e não querer "se juntar" e sim ter o devido direito ao poder é algo que causa mais pavor do que a expressão "cinco jovens negros foram assassinados". Direcionar alguma ação contra pessoas brancas seria então mais inconcebível que o inconcebível neste mundo onde o racismo existe, a supremacia branca existe, mas fazer qualquer ligação entre isso e pessoas brancas é um pecado (ironia do termo). As próprias pessoas pretas se voltariam contra o ativismo preto.
A mídia branca não exitou em gritar aos quatro cantos que Johnson era ativista negro e mesmo que ele tenha declarado atuar sozinho, fazer ligações através de suas redes sociais ao "Black Power" (Poder Preto) e movimentos como Novas Panteras Negras. Ou seja, usar o fato para comprovar a tese de que movimentos pretos são extremistas. Nos acusar de odiadores, assassinos e nos "igualar" no imaginário social aos que cometem o genocídio do povo preto, que a propósito, não são eles mesmos (ironia novamente).
A questão é: isso também já é uma realidade. Ativistas negros que defendem o mínimo de autonomia pro povo preto já são consideradas/os radicais, extremistas, odiadores de pessoas brancas, violentas/os, "racistas". E nenhuma iniciativa direta no sentido de explicitar essa linha de pensamento terá espaço em veículos de comunicação. O menor sinal de orgulho preto, a menor menção de poder já abre precedentes para julgamentos de exagero, apologia a violência e a segregação, vide a repercussão do clipe Formations de Beyoncé. O que é aceito, no que somos aceitas/os, ouvidas/os, o que "nos deixam" propagar e "até concordam" nunca será algo capaz de acabar com a supremacia branca e com a exploração do povo preto. Em grande escala, nossa imagem já é criminalizada e quando não é no máximo cooptada para construir um consenso, para forjar uma igualdade que não existe em nenhum país da diáspora.
Então, se a reação de pessoas pretas seria nos julgar extremistas e nos condenar por odiar brancas e brancos idefesos, nada se acrescentaria de novo na dinâmica internacional de genocídio do povo negro.


A terceira questão: a tristeza pela morte de um irmão

Sim. Micah Xavier Johnson era um irmão preto. Eu considero assim todas e todos africanas e africanos do continente e em diáspora. Longe de fazer qualquer referência idealizada e equivocada de África, traço essa irmandade como um referencial identitário político e de resistência. O que não tem nada a ver com homogeneidade ou amor romântico. Mais um homem preto, africano morto. Micah, ao contrário de milhares de atiradores brancos não estava entediado ou motivado por um sentimento de rejeição pessoal. Não era uma insatisfação dele com o mundo. E por mais que telejornais tenham tentado a resumir a "estar irritado com a morte de jovens negros pela polícia" sabemos que a motivação de Johnson era o acúmulo de séculos de assassinatos e violações. E se discordarmos da idéia de ancestralidade por julgarmos subjetiva e espiritualista, ao menos uma vida de agressões diárias à sua pessoa ou às pessoas do mesmo grupo social do qual pertence toda e todo negro tem. Acordar todos os dias e saber que alguém igual a você foi morta ou morto exatamente por se parecer com você mata um pouco de todas e todos nós a cada dia. Pensar que um irmão, no sentido político já mencionado, chegou à ações extremas e perdeu sua própria vida nos mata e desespera também. Johnson foi assassinado, gradativamente, até chegar diante da bomba da polícia de Dalas que o matou por "legítima defesa".

A quarta questão: o recado a pretas e pretos ativistas

Vamos destruir vocês. Isso que ouvi e li a cada matéria que consegui ter acesso. Em tempos onde Beyoncé, uma das maiores cantoras pop internacionais, começa a apresentar uma postura mais incisiva na defesa da vida do povo preto, o contra golpe na tentativa de criminalizar qualquer postura de resistência preta continua sendo desferido. Me pergunto quanto tempo demorará, se já não aconteceu, para insinuarem que a ação de Johnson poder ter sido incitada ou alimentada pelo clipe de Bey. Isso me preocupa, ao mesmo que me impele a pensar o quanto já estamos sem a possibilidade de retroceder e o quanto isso significa sacrifício. Mas também me leva a pensar o quanto a estratégia pode permitir que esse "sacrifício" quando iniciado por nós mesmas/os pode ser feito de forma estratégica, por exemplo: ao se ter poder econômico, visibilidade, etc.
A questão é: isso sempre existiu. Movimentos pretos sempre foram criminalizados e ativistas pretas e preto sempre execradas/os, perseguidas/os e neutralizadas/os.
Então, se a reação seria condenar e perseguir ativistas pretas/os nada se acrescentaria de novo na dinâmica internacional de genocídio do povo negro.

Para além dessas questões me pergunto sobre muitos outros pontos como não termos uma estrutura concreta de organização e resistência transnacional, sobre as doenças e dores que absorvemos a cada dia que passa, sobre como nossa fragmentação e a reprodução dos ideias de hegemonia brancos nos enfraquecem, sobre como o sistema anti negras e negros construiu muito bem suas bases e castra nossas tentativas e poda nossas energias para a luta, etc.

Mas a questão é que do medo, das angústias e das dúvidas não sobra um indício de que a ação de Micah Xavier Johnson possa ter sido um agravo na fúria da branquitude contra o povo preto. Não consigo vislumbrar espaço vazio, ainda não preenchido de ódio pela branquitude, para isso acontecer. A dinâmica do sistema anti negras e negros é muito maior, contínua e complexa do que podemos imaginar.












quarta-feira, 29 de junho de 2016

Meu amor escrito


Procurei entre amores escritos e não tive
Nenhum que me desse a mesma paz do teu riso
Nenhum que trouxesse o calor dos teus braços
Nenhum que fizesse lembrar dos teus traços
Nenhum que me fosse tão bom como amigo

Nem ao menos um tão familiar quanto o teu corpo
E cada palavra era como borracha na tinta de caneta seca
Não mexia, não mudava
Nenhuma linha alinhava a saudade
Nenhuma vírgula entremeava a angústia
Não escrevia, nem copiava

Resolvi então escrever de amor na folha do tempo
Grifei as alegrias, as completudes, os olhares mais doces
Segui linha por linha, sem dar muito espaço
Criei, reescrevi, fiz meu novo dicionário
E com novos significados, minha alma escreve a cada momento
E sem pontos finais sigo adiante
Te enviando meus eus poemas
Até que acabem as letras do mundo.

(Para Danilo)

A velha e a passista

Em um tempo não muito simples de se medir se encontraram na estrada da vida uma velha e uma passista.

A primeira, carregando as marcas de todas as décadas já vividas e a segunda carregando todos as ansiedades sobre as décadas que estavam por vir.
Uma nunca havia realmente visto a outra. Olharam-se, estranharam-se, reconheceram-se totalmente como diferentes. Tanto que chegavam a ser familiares. E as estradas que eram distantes se encontraram. E começou assim uma nova história.
A jovem passista aprendia àquela época tudo que era de novo sobre seu próprio espírito. A velha perdia aos poucos tudo que a mente havia registrado ao longo da vida. Inventava. Inventavam. Uma por não saber, outra por não lembrar.
A velha que já não tinha então em quem confiar, amedrontada por seus próprios fantasmas, viu na passista uma alma nova, desconhecida, e do topo de todos os seus anos pensou “por que não arriscar?”. Afinal, se não fosse aquela jovem com quem contar diante de tantos inimigos que flutuavam em suas próprias memórias embaralhadas?
A passista que ainda não tinha nada de certo para o futuro, amedrontada por todas as suas dúvidas, viu na velha uma certeza de resistência, de existência, e mesmo com toda sua agilidade pensou “por que ir tão depressa e deixá-la pra trás?”. Afinal, se pudesse ser como aquela velha gostaria que alguém estivesse com ela, pelo menos às vezes.
A velha contava a passista suas histórias que nunca viveu, fruto de suas memórias substitutas. Permitia-lhe acesso a seus lugares, confiava seus bens de valor sentimental. Sabia que se não fosse com ela, não poderia ter tranqüilidade da presença de mais ninguém.
A passista ouvia as mentiras sinceras, compenetrada em tentar traduzir para verdade símbolos ou significados. Deixava suas urgências. Sabia que se não fosse com a velha, não poderia dedicar aquele sentimento tão desinteressado a mais ninguém.
Não necessariamente se entendiam, ou sabiam do que a outra falava. Se comunicavam. Trocavam sorrisos e olhares. E o simples fato de existir uma outra mulher presente, vivente e sensível já lhes trazia a companhia melhor do mundo.
Dançavam as duas. Cada uma em seu ritmo, cada uma em seu tempo. Mas sem dúvida era um gosto em comum. Gosto que não precisaram dizer uma a outra. Era algo bem maior do que elas para precisar ser apresentado. Talvez uma dançasse para extravasar e canalizar sua energia abundante de juventude. E talvez a outra dançasse para tentar conservar as poucas energias que ainda tinha nos músculos do corpo. Mas independente do porquê, dançavam. E quando viam-se dançando se encantavam. Se admiravam e dançavam uma para a outra, uma com a outra, sem muitas vezes nem mesmo se olharem.
Celebravam a pequena doçura de ter a paz de presenciar outra existência feminina.
Celebravam-se assim ancestrais: uma na presença da mais antiga, da que viria a ser um dia e a outra na presença da mais nova, do que já havia sido.
Ancestrais de si mesmas, futuro de si mesmas. Cominhos e recomeços de si mesmas.
Celebravam-se independentes de seus passados ou de seus futuros.
Contavam com elas para vibrar pela eternidade.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Preto pessimismo

Aos pouco volto para o mundo sem a menor vontade.
O país está um caos e a sensação de que nada pode ser feito está na cabeça e no peito da maioria de nós. Acredito que não esteja apenas naqueles que são ricos e poderosos, e portanto podem mexer seus pauzinhos e fazer algo para defender o que lhes interessa; e na cabeça daqueles idealistas, muito idealistas.
Não sei a quantas anda o cenário de movimento negro, mas quanto tento estudar sobre, mais me desanimo. Penso em que lugar vamos parar. Extremamente massacradas/os, matando uns aos outros, traçando inimigas e inimigos em nós mesmas. Consigo ver muita teoria e pouquíssima prática. Esforço para unidade, não vejo. São muitas verdades e soluções absolutas para que haja alguma possibilidade de diálogo. E se somos todas/os pretas e pretos, a menor discordância de idéias faz com isso caia por terra, enquanto a menor afinidade garante o direito de decidir pela outra ou outro.

Sei que é repetitivo, mas constato que o serviço racista branco foi muitíssimo bem feito: perdidas/os de nossas origens, sem referências culturais e sem confiança e respeito por nós mesmas/os zanzamos no mundo, nos batendo e nos odiando, tudo em nome do nosso próprio bem.

Defendemos valores e culturas que na maioria das vezes não temos mais a capacidade de praticar ou de simplesmente compreender. Nos abandonamos constantemente, nos viramos as costas, nos julgamos sem muitas vezes termos nos olhado nos olhos uma única vez. Cobramos o que não podemos dar. Esquecemos que faz parte da resistência um constante reaprendizado, um redescobrimento, processos que levam tempo e nos quais cada uma/um tem seu tempo. Sabemos todas as formas com as quais a supremacia branca nos adoece, teorizamos seus desdobramentos, mas não conseguimos reconhecer no nosso povo as deficiências imputadas e ter paciência e compreensão diante delas.

Longe de fazer qualquer análise de conjuntura esse microtexto tem a única e exclusiva função de registar: estamos mal, muitíssimo mal.
Focos e grupo se acham potentes, se intitulam referências, ressurgimentos, novas frentes. Mas estamos aos cacos, perdidas e perdidos.
E enquanto não conseguirmos olhar para os lado e realmente nos ver será daqui para pior. Continuaremos sendo usadas/os contra nós mesmas/os, sendo setoriais, massa de manobra, número no sindicato, pauta de coletivo pra garantir a diversidade. Continuaremos perpetuando através de nossas bocas outras vozes.
Reivindicamos-nos como Dandaras, Zumbis, rainhas e reis, mas não temos a mínima capacidade de compreender o significado de estratégia, aliança e resistência. Perdemos nosso faro ancestral para batalhas, nossa inteligência general.Viramos as costas para referências pretas que construíram, lutaram, escreveram. Achamos que descobrimos ontem o problema, que encontramos hoje a solução e que ninguém teve capacidade e empenho para isso antes. Sucumbimos como abelhas no criadouro, que tontas com o vapor tóxico produzem mel para outrem e o entregam sem resistência.

Aguardo os desdobramentos dos próximos capítulos dessa história sabendo que eles contém a morte de jovens pretos, de jovens pretas, de mulheres pretas, de homens pretos, de crianças pretas e de idosas e idoso pretos também. Sabendo que quando não a morte, a dor, a tristeza e o sofrimento de nosso povo estará incluído também. Sabendo que quando o simples desgosto pela vida se fará presente.

Pessimistamente preta, sigo.


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Relatos da minha Ansiedade

Hoje eu queria falar sobre nossa mente, aliás sobre a minha.
Não é algo que eu goste muito de comentar, mas eu tenho/tive (recaio sei lá) transtorno de ansiedade.
Sempre fui muito pilhada com tudo, sempre quis planejar tudo, estar preparada pra não ficar triste com os resultados ruins. Em parte isso vêm de algumas dificuldades na infância que me causaram certas frustrações.

A questão é que depois de aprofundar mais meus estudos e militância preta, comecei a ter crises de ansiedade. Por ter uma rinite que não me larga, a alergia foi meu start e eu simplesmente achava que minha garganta ia fechar e eu ia morrer. A esse pensamento juntavam-se os sintomas mais comuns da crise de ansiedade: falta de ar, tremor, taquicardia, tontura, mãos geladas e principalmente medo.

Na primeira vez fui parar na UPA porque achava que ia desmaiar, que ia morrer e que estava em crise alérgica, depois de uma série de espirros - mesmo espirrar sendo parte da minha rotina. A médica me explicou que minha garganta não fecharia por esse tipo de alergia, explicou como seria caso isso acontecesse com alguém, me recomendou um alergista pra eu fazer um tratamento contínuo e me disse para ficar tranquila.
Eu não acreditei. A mente da gente é capaz de construir um laudo perfeito, de forjar sintomas, de puxar lembranças de fatos soltos e montar um quebra-cabeças que faz a resposta de uma clínica-geral parecer furada.
Seguiram dias de crise, ou melhor, noites. Às vezes com alguns intervalos, em alguns dias eu estava bem. Mas quando chegava em casa a noite e todas dormiam meus sintomas começavam. Um dia na academia tive uma queda de pressão e quase desmaiei, afinal sempre comi mal antes de ir pra academia. Mas foi mais um fato pra minha mente reforçar a idéia de que eu poderia morrer a qualquer momento. Já não podia ver cenas fortes de novelas ou séries, nada que remetesse a situações de angústia, medo ou tensão. As cenas da Grazi na cracolandia naquela minisseria da TV por exemplo já me davam falta de ar. Um ator chorando, alguma notícia sobre doença, qualquer sentimento mais tenso era absorvido por mim rapidamente.
Eu, como passista, antes das apresentações tinha que controlar o meu pânico e a idéia de que eu ia passar mal, de que eu estava sem ar, de que eu ia morrer, de que eu não podia sambar porque meu corpo não ia aguentar. Eu ficava tão nervosa que não conseguia curtir, só queria que acabasse logo.
No ônibus as vezes pensava que ia passar mal e que no meio da Avenida Brasil não ia dar tempo de ninguém me socorrer. Precisei viajar de avião a trabalho e ficar em um hotel onde as janelas não abriam e quase saí no meio da madrugada de um hotel em outra cidade, porque não conseguia respirar. A volta do avião foi um tormento e 1 hora pareceu uma eternidade de pensamentos ruins.
Quase ninguém sabia quando eu estava em crise. Na maioria das vezes ou eu estava sozinha, ou tinha vergonha de comentar, ia ter que explicar muita coisa.

Depois de um tempo, por achar que eu tinha algo marquei clínico-geral e marquei alergista.
Mas antes disso, em um dia de crise fui em uma emergência: tinha os mesmos sintomas e o medo gigante de morrer.
O clínico que me atendeu me disse: "você pode ter alergia, mas esses sintomas indicam transtorno de ansiedade.". Me indicou um psiquiatra, me explicou que não tinha nada a ver com ser maluca, me falou sobre possíveis causas. E disse para eu ir na consulta e fazer os exames que tinha marcado, pois sabia que só a palavra dele não seria suficiente para minha ansiedade.
Saí do consultório atordoada. Me senti fraca. Me senti uma mulher frouxa que não segura a onda dos problemas da vida. Sempre a menorzinha, a bonitinha, a menininha que tinha bronquite e se comportava igual a uma mocinha, depois a braba, a marrenta, a que dá nó em pingo d'água, a que corre atrás, que faz e acontece. Eu não fazia a menor idéia de onde estavam todas essas. Eu só vi uma pessoa fraca, que um médico, embora com muito cuidado e atenção, falou que tinha um transtorno. Eu fiquei com muita vergonha também.

Depois do choque da notícia, passei a perceber que realmente meus sintomas tinham hora e situações para aparecer. Percebi também que quando eu estava distraída com alguma coisa eles sumiam. Percebi que de todas as noites que eu estive em pânico com a certeza de que ia morrer eu domi, vencida pelo cansaço e acordei viva. Comecei a me desafiar a me equilibrar e foi dando um pouco certo. Mas para ficar mais tranquila eu precisava ter a certeza de que estava bem. Fiz exames e principalmente o teste da alergia, que afastou a idéia de alergias alimentares, que eram meu maior medo. Eu cismava que qualquer coisa que estava comendo poderia me dar uma reação alérgica grave, mesmo sendo coisas que eu sempre comi: abacaxi, camarão, ovo, tempero, alho. Eu parei no meio de várias refeições e joguei a comida fora por medo de acabar de comer.

Enfim, exames feitos, comecei a fazer um esforço mental enorme. A fé nos orisás também me ajudou muito. Falando de mente a parte racional e objetiva apenas não daria conta. Me afastei de certos tipos de espaços políticos e de discussões. Desisti de acreditar em certas atitudes e estratégias. Abandonei em parte minha postura de militante. Compartilhei com algumas pessoas em busca de apoio e acolhimento, mas sinceramente não encontrei muito. Acho que por ansiedade ser uma palavra normal ninguém leva muito a sério. Algumas pessoas achavam frescura, outras que era só "superar" ou "não pensar nessas coisas". Em casa eu não quis falar muito sobre, pra não preocupar ninguém. Um ex me ajudou em certos momentos, mas quando se separa tudo se acaba e certos relacionamentos acabam se tornando pontos de fragilidade e tensão que levam justamente à.....ansiedade. Duas grandes amigas me ouviam e se preocupavam, mas nem sempre eu tinha vontade de compartilhar, de pedir ajuda ou de falar "Estou passando mal, será que você pode conversar comigo?". Dava vergonha.

Enfim, a trancos e barrancos melhorei muito. Melhorei minha alimentação, mudei certos hábitos e posturas, passei a desenhar mais, voltei a compor e cantar, cantar muito. Passo dias sem me ligar nisso, sem ter pensamentos assustadores. Mas as vezes, em épocas de muito stress ou tristeza minha ansiedade sai do controle de novo.
Agora é muito mais fácil me controlar e superar os sintomas. Mas ainda é um exercício.
Nos últimos dias trabalhei muito, estou com muitas preocupações, lembranças, expectativas. O dia foi difícil, cansativo, corrido. Agora a noite fui comer e novamente os sintomas vieram a tona. Já no preparo pensei "mas e se me der alergia". E me respondi "mas você não tem alergia a isso. Aliás vc comeu anteontem, lembra?". E aí fiz a comida, comi e no final do prato cocei a mão. Rapidamente pensei numa reação alérgica e senti algo na garganta. O medo voltou..Tremor, suor frio. E todo o exercício recomeça: observar que tudo o que estou sentindo se deve a minha reação de pânico. Me acalmar para que passe. Apelar pros resultados de exames, pra saúde que tá em dia. Olhar pra mim e assumir que estou cansada, que fico triste, que estou com medo de um monte de coisas e na expectativa de um monte de outras coisas.

Eu sei que esse texto ficou enorme e que não tem nenhuma graça, nem nenhuma teoria diferente, nem nenhuma opinião sobre nada. Mas hoje, eu resolvi tentar mais uma coisa pra me ajudar a controlar meus sintomas. Ao longo desses meses resolvi não procurar um psiquiatra, mas buscar outros aconselhamentos e terapias (Não quero induzir ninguém a fazer o mesmo, é uma decisão delicada, que precisa ser acompanhada e muito avaliada, cuidem-se!). Estou me experimentando, me cuidando, me entendendo aqui comigo e me ouvindo em todos os sentidos. Estou aprendendo a respeitar meu sentimento sem julgar a intensidade das minhas reações, estou me respeitando, me adaptando. E isso não tem nada a ver com a falsa idéia de se amar e ser plena e completa. Tem muito mais a ver com a idéia de se reconhecer humana, limitada, com necessidades e sentimentos.


A comida estava ótima, coloquei um molho bacana. E eu também nunca tive alergia a molho. Eu não tenho alergia a essa comida, nem ao molho, nunca tive e não vou morrer por causa disso hoje. Eu já repeti isso pra mim várias vezes ao longo desse texto.

Enfim, acho que agora consigo dormir. Amanhã acordarei bem de novo. Escrever faz bem, sempre fez.