quarta-feira, 29 de junho de 2016

Meu amor escrito


Procurei entre amores escritos e não tive
Nenhum que me desse a mesma paz do teu riso
Nenhum que trouxesse o calor dos teus braços
Nenhum que fizesse lembrar dos teus traços
Nenhum que me fosse tão bom como amigo

Nem ao menos um tão familiar quanto o teu corpo
E cada palavra era como borracha na tinta de caneta seca
Não mexia, não mudava
Nenhuma linha alinhava a saudade
Nenhuma vírgula entremeava a angústia
Não escrevia, nem copiava

Resolvi então escrever de amor na folha do tempo
Grifei as alegrias, as completudes, os olhares mais doces
Segui linha por linha, sem dar muito espaço
Criei, reescrevi, fiz meu novo dicionário
E com novos significados, minha alma escreve a cada momento
E sem pontos finais sigo adiante
Te enviando meus eus poemas
Até que acabem as letras do mundo.

(Para Danilo)

A velha e a passista

Em um tempo não muito simples de se medir se encontraram na estrada da vida uma velha e uma passista.

A primeira, carregando as marcas de todas as décadas já vividas e a segunda carregando todos as ansiedades sobre as décadas que estavam por vir.
Uma nunca havia realmente visto a outra. Olharam-se, estranharam-se, reconheceram-se totalmente como diferentes. Tanto que chegavam a ser familiares. E as estradas que eram distantes se encontraram. E começou assim uma nova história.
A jovem passista aprendia àquela época tudo que era de novo sobre seu próprio espírito. A velha perdia aos poucos tudo que a mente havia registrado ao longo da vida. Inventava. Inventavam. Uma por não saber, outra por não lembrar.
A velha que já não tinha então em quem confiar, amedrontada por seus próprios fantasmas, viu na passista uma alma nova, desconhecida, e do topo de todos os seus anos pensou “por que não arriscar?”. Afinal, se não fosse aquela jovem com quem contar diante de tantos inimigos que flutuavam em suas próprias memórias embaralhadas?
A passista que ainda não tinha nada de certo para o futuro, amedrontada por todas as suas dúvidas, viu na velha uma certeza de resistência, de existência, e mesmo com toda sua agilidade pensou “por que ir tão depressa e deixá-la pra trás?”. Afinal, se pudesse ser como aquela velha gostaria que alguém estivesse com ela, pelo menos às vezes.
A velha contava a passista suas histórias que nunca viveu, fruto de suas memórias substitutas. Permitia-lhe acesso a seus lugares, confiava seus bens de valor sentimental. Sabia que se não fosse com ela, não poderia ter tranqüilidade da presença de mais ninguém.
A passista ouvia as mentiras sinceras, compenetrada em tentar traduzir para verdade símbolos ou significados. Deixava suas urgências. Sabia que se não fosse com a velha, não poderia dedicar aquele sentimento tão desinteressado a mais ninguém.
Não necessariamente se entendiam, ou sabiam do que a outra falava. Se comunicavam. Trocavam sorrisos e olhares. E o simples fato de existir uma outra mulher presente, vivente e sensível já lhes trazia a companhia melhor do mundo.
Dançavam as duas. Cada uma em seu ritmo, cada uma em seu tempo. Mas sem dúvida era um gosto em comum. Gosto que não precisaram dizer uma a outra. Era algo bem maior do que elas para precisar ser apresentado. Talvez uma dançasse para extravasar e canalizar sua energia abundante de juventude. E talvez a outra dançasse para tentar conservar as poucas energias que ainda tinha nos músculos do corpo. Mas independente do porquê, dançavam. E quando viam-se dançando se encantavam. Se admiravam e dançavam uma para a outra, uma com a outra, sem muitas vezes nem mesmo se olharem.
Celebravam a pequena doçura de ter a paz de presenciar outra existência feminina.
Celebravam-se assim ancestrais: uma na presença da mais antiga, da que viria a ser um dia e a outra na presença da mais nova, do que já havia sido.
Ancestrais de si mesmas, futuro de si mesmas. Cominhos e recomeços de si mesmas.
Celebravam-se independentes de seus passados ou de seus futuros.
Contavam com elas para vibrar pela eternidade.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Preto pessimismo

Aos pouco volto para o mundo sem a menor vontade.
O país está um caos e a sensação de que nada pode ser feito está na cabeça e no peito da maioria de nós. Acredito que não esteja apenas naqueles que são ricos e poderosos, e portanto podem mexer seus pauzinhos e fazer algo para defender o que lhes interessa; e na cabeça daqueles idealistas, muito idealistas.
Não sei a quantas anda o cenário de movimento negro, mas quanto tento estudar sobre, mais me desanimo. Penso em que lugar vamos parar. Extremamente massacradas/os, matando uns aos outros, traçando inimigas e inimigos em nós mesmas. Consigo ver muita teoria e pouquíssima prática. Esforço para unidade, não vejo. São muitas verdades e soluções absolutas para que haja alguma possibilidade de diálogo. E se somos todas/os pretas e pretos, a menor discordância de idéias faz com isso caia por terra, enquanto a menor afinidade garante o direito de decidir pela outra ou outro.

Sei que é repetitivo, mas constato que o serviço racista branco foi muitíssimo bem feito: perdidas/os de nossas origens, sem referências culturais e sem confiança e respeito por nós mesmas/os zanzamos no mundo, nos batendo e nos odiando, tudo em nome do nosso próprio bem.

Defendemos valores e culturas que na maioria das vezes não temos mais a capacidade de praticar ou de simplesmente compreender. Nos abandonamos constantemente, nos viramos as costas, nos julgamos sem muitas vezes termos nos olhado nos olhos uma única vez. Cobramos o que não podemos dar. Esquecemos que faz parte da resistência um constante reaprendizado, um redescobrimento, processos que levam tempo e nos quais cada uma/um tem seu tempo. Sabemos todas as formas com as quais a supremacia branca nos adoece, teorizamos seus desdobramentos, mas não conseguimos reconhecer no nosso povo as deficiências imputadas e ter paciência e compreensão diante delas.

Longe de fazer qualquer análise de conjuntura esse microtexto tem a única e exclusiva função de registar: estamos mal, muitíssimo mal.
Focos e grupo se acham potentes, se intitulam referências, ressurgimentos, novas frentes. Mas estamos aos cacos, perdidas e perdidos.
E enquanto não conseguirmos olhar para os lado e realmente nos ver será daqui para pior. Continuaremos sendo usadas/os contra nós mesmas/os, sendo setoriais, massa de manobra, número no sindicato, pauta de coletivo pra garantir a diversidade. Continuaremos perpetuando através de nossas bocas outras vozes.
Reivindicamos-nos como Dandaras, Zumbis, rainhas e reis, mas não temos a mínima capacidade de compreender o significado de estratégia, aliança e resistência. Perdemos nosso faro ancestral para batalhas, nossa inteligência general.Viramos as costas para referências pretas que construíram, lutaram, escreveram. Achamos que descobrimos ontem o problema, que encontramos hoje a solução e que ninguém teve capacidade e empenho para isso antes. Sucumbimos como abelhas no criadouro, que tontas com o vapor tóxico produzem mel para outrem e o entregam sem resistência.

Aguardo os desdobramentos dos próximos capítulos dessa história sabendo que eles contém a morte de jovens pretos, de jovens pretas, de mulheres pretas, de homens pretos, de crianças pretas e de idosas e idoso pretos também. Sabendo que quando não a morte, a dor, a tristeza e o sofrimento de nosso povo estará incluído também. Sabendo que quando o simples desgosto pela vida se fará presente.

Pessimistamente preta, sigo.