quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Equação do medo preto: 2 X + = ? (Duas vezes mais é igual o quê?)

Apesar da proposta do título, este texto não é exato. Não tem verdades, nem certezas absolutas. Como sempre, apenas vamos pensando.

Hoje pude assistir na faculdade apresentações de trabalhos de pesquisa de outros alunos. Foram muito bem apresentados. Mas sem demérito de nenhum dos meus colegas, pensei, de repente, que eu poderia ter apresentado também e que eu tinha plena capacidade de fazer o que eles estavam fazendo. Aliás, eu já tinha feito. Logo em seguida lembrei do porque não apresentei nada: muito mais do que tempo para fazer pesquisa, eu realmente não me sentia apta para falar de nenhum assunto assim, "academicamente falando". E então me dei conta de que não era uma questão de conteúdo, de experiência, era uma questão de uma preta se sentir pronta para ir em frente.

Para nós pretas e pretos nos sentirmos capazes de assumir a dianteira de determinados lugares nos cobramos quase sempre de muito mais tempo e muito mais qualificação do que uma pessoa branca se cobraria para tal. Eu não pretendo falar aqui sobre o quê e como a sociedade nos exige (que dá pano pra manga, pra gola, pra blusa inteira aliás), mas de como nós mesmas nos exigimos.

A pergunta principal é: Por que nós nos exigimos?
Já ouviu alguma vez na infância que VOCÊ tem que ser limpinha? Que VOCÊ tem que ser educado? Que VOCÊ tem que ser mais do que bom? Essas frases, que poderiam ser ouvidas por qualquer pessoa, para nós pretas e pretos vêm com outra entonação. Vêm com a idéia implícita de que temos que compensar algo. De que temos que equilibrar na balança de qualidades o peso do defeito de ser preto.
Ao longo de séculos nos foi tirado pelo racismo o orgulho de nossa origem. Foi colocado em nosso inconsciente coletivo através de várias formas de violência uma vergonha de ser preta ou preto. Nosso povo foi colocado como símbolo de inferioridade e de tudo que há de ruim socialmente falando.
O desdobramento dessa ideologia foi tão bem planejado e bem-sucedido que passamos a culpar nossa identidade preta pelas mazelas que o racismo branco impôs ao nosso povo. Um exemplo: se diante do grande número de desemprego, alto nível de exploração, ausência de oportunidades de qualificação e violência institucional uma parcela da população preta e pobre se envolve em atividades criminosas a culpa seria única e exclusivamente de sua índole marginal e jamais de todo sofrimento imposto pela dominação e exploração dos colonizadores. Desse pensamento também resultou a imagem de que não temos uma história, afinal se tudo que vem de nós é ruim, não há nada importante a ser lembrado. Precisaríamos então nos curvar e absorver tudo que vêm das boas referências da cultura branca.

Ok, dei uma volta ao mundo. Voltando.
Uma resposta pra pergunta acima poderia ser: nos exigimos porque no fundo acreditamos que somos incapazes, inferiores e duvidamos de qualquer qualquer bom desempenho que possamos ter. Isso tudo compõe um sentimento crônico chamado INSEGURANÇA.
A insegurança sempre faz com que exitemos muito em dar um passo adiante ou simplesmente faz com que a gente não dê passo nenhum. E ao contrário do que possa se pensar isso não tem nada a ver com zona de conforto: aliás é um lugar de desconforto imenso. É como ter uma bola de ferro invisível presa nos pés. É carregar um peso que torna a caminhada exaustiva e te impede de levantar a cabeça.
É nesse sentido que a gente olha lugares como faculdade e acha que não são pra gente, que a gente acha que não pode ser médica, que escolhe sempre as mesmas profissões "populares", que se convence sempre por outras referências "mais qualificadas".
Um comportamento que muita gente pode criminalizar como "acomodação", mas que é muito mais um grande medo de ir além do que tudo que te ensinaram que era o seu limite. Se você acredita que não tem asas não vai querer tentar voar.
Se foi construído no imaginário de todo um povo que ele não é capaz e que ele não é digno, como não estaria cravado dentro de cada uma e cada um de nós esses sentimentos?
Desse fato surge a alternativa: ser duas vezes melhor. Uma equação totalmente falha que aparentemente insinuaria que a competência de duas pessoas negras equivaleria a de uma pessoa branca. A idéia de ser duas vezes melhor não traz pra nós uma elevação de orgulho: ela reforça o pensamento que diz que somos inferiores, que somos menos, ela diz que somos metade do que o branco é.
Quando falamos de ser mais, de ser melhor, na verdade nunca está definido o que é isso. Se fosse pra comparar mais na matemática acho que seria tipo uma dízima periódica. É certo que nesse sentido não temos uma meta exata a ser alcançada. É uma eterna insatisfação e uma eterna não suficiência. Ou não damos passos adiante, ou damos passos carregados de um super esforço que vem imediatamente seguido de uma nova necessidade a ser superada, de uma série de provas que precisamos dar para justificar aonde chegamos e o que conquistamos, seja o que for. Nunca nos bastamos por nós mesmas, por nossa felicidade, por nosso querer: temos uma apresentação pronta, cheia de referências e de justificativas por sermos o que somos, "mesmo sendo" pretas ou pretos.

Ops. Outra volta ao mundo? Já chega.

Pensei sobre tudo isso e só entendi mesmo que grande parte da cobrança que faço a mim mesma é muito mais por insegurança e por me julgar incapaz do que por rigor e gosto pela excelência. Aliás, eu sou de Áries, nem ligo tanto pra perfeição assim. Ligo para movimento. E o movimento de dar o passo adiante tem que ser feito. E se a partir daí precisarmos dar passos atrás que o façamos. Mas vamos olhando as amarras, vamos soltando aos poucos. Vamos (re)apendendo a nos sentir capazes, fortes, seguras. Vamos aprendendo a acreditar que podemos sim. Podemos tudo.